Avançar para o conteúdo principal

A importância do quase

Quando quase se quebra, é porque não se consegue vergar mais.

É porque o queixo já se encontra na ponta dos nossos pés em vez de ser a ponta do nosso rosto.

É porque os joelhos já aterraram depois de tanta força que fizeram para manter as outras estruturas de pé.

Quando quase se quebra é porque a coluna vertebral já não aguenta o peso do corpo, da alma e da vida. É porque o coração deixou de funcionar como contra força, deixou de flutuar para ajudar a coluna a manter-se direita e firme. Como um balão de ar quente.

Quando o coração fica vazio e perde a sua função de amar e de se sentir amado, tudo o resto quase quebra. A alma fica densa e não consegue iluminar o caminho. O esqueleto fica flácido e não consegue firmar nada.

Quando quase se quebra, é porque os olhos já não têm lágrimas e as olheiras chegam à boca. E a boca já não tem palavras e a garganta está seca. As unhas já se cravaram nas palmas das mãos há muito tempo. Já fizeram ferida e já cicatrizaram.

Quando quase se quebra o sangue já não corre nas veias. Corre um desespero que de tão gasto já é bafiento, de antigo. Mas ainda gela. E o gelar adormece, acalma a dor.

Quando quase de quebra, o olhar turva e abre o chão. Já só vê os palmos de terra. Os sete necessários para que o descanso seja permanente.

Por cada vez que quase se quebra, morrem arcos-íris, recolhem-se a fadas e as bruxinhas boas perdem a magia. Partem-se as varinhas de condão. E o que se parte nunca volta a ser novinho em folha. Pode reparar-se ou começar-se outra vez. Mas não fica como era dantes.

Por cada vez que quase se quebra, existem uma data de corações que se partem em cacos. E, mesmo que se colem, não deixam de ser cacos. Não deixam de ser pecinhas de puzzle que se voltam a juntar. Formando um todo que tem por lá uns vincos e umas marcas, umas fronteiras e uns limites.

Por cada vez que quase se quebra existe sempre salvação. A salvação está no “quase”. O “quase” é que não deixa que se quebre de vez, que se quebre definitivamente. Que se quebre em mil pedacinhos que se espalham por onde não se podem voltar a juntar. O “quase” não deixa que se caia no chão, partido pela cintura sem nenhuma réstia de vigor para se levantar. O “quase” ainda sustém o peso do universo nos ombros. O “quase” deixa que o amor encontre as suas brechas para entrar. Permite que corra como a água que sempre encontra um caminho. O amor é a água da alma e do coração. É a vida da nossa essência, a tal que é divina. E basta só um bocadinho para se multiplicar exponencialmente e para dar uma varridela a tudo o que é pesado, horrível e denso. 

Para quase se endireitar outra vez é preciso escolher. É preciso dar a oportunidade ao amor com a certeza (talvez a única) de que já não há quase nada a perder. Escolher dar uma oportunidade é uma janela que se abre, uma janela que deixa entrar uma lufada de ar que nos refresca o rosto e que quase nos revigora. O “quase” é muito importante. Talvez seja o busílis da salvação.

Comentários

As mais lidas...

Os olhos da alma

Existem olhares que matam. Não matam a vida mas matam o coração e a alma. Hoje estou neste comprimento de onda. A pensar na importância que os olhares têm. Eu, que sou uma pessoa cheia de palavras e que adoro este tipo de expressão, sou uma franca apreciadora de olhares. Não só de olhares como também de todo o conjunto de formas não verbais de comunicarmos uns com os outros. Da mesma forma que o nosso subconsciente e o nosso coração são muito mais inteligentes que o nosso cérebro e que a nossa racionalidade, o não verbal expressa muito mais sinceramente o que o outro está a pensar ou a sentir. E o olhar é majestoso nesta forma de comunicar. Penso que existem olhares que salvam e olhares que condenam. E não são necessárias quaisquer palavras a acompanhar o que se diz com os olhos.  Neste momento tenho os pensamentos a mil à hora (o que não é difícil, tratando-se de mim). E penso nestas coisas dos olhares. Da importância que tem olharmos os outros, olhos nos olhos, de igual para igu

Corações à janela

De vez em quando o meu coração sai fora do peito. Deixa um lugar vazio. Cheio de nada. Vai espreitar à janela. Vai ver se existem outros corações como ele, a espreitarem, a ver se encontram o que lhes falta. Quando se espreita à janela de uma casa vazia, vê-se fora uma multidão que ainda torna mais vazia a casa da janela onde se espreita. A janela de onde o meu coração espreita tem uma vista colossal sobre a rua da amargura. Da janela vêem-se outros corações a espreitar. Uns despedaçados, outros partidos. Todos os corações inteiros e de saúde encontram-se dentro do peito onde pertencem. Quanto muito, passeiam de um peito ao outro quando se trocam palavras de amor. Não espreitam à janela de casas vazias. Mas uma casa vazia torna-se muito grande, muito solitária e muito fria para que um coração rasgado possa estar sozinho em paz a sangrar. Tem que se entreter e vai espreitar à janela. Tem que ver se encontra um outro coração com quem possa partilhar as mágoas. E faz adeus aos outros

In Extremis

Ele há dias murchos como o outono. Não gosto muito do outono mas ele não tem culpa nenhuma. Parece que o outono é muito mais triste dentro de nós do que fora. É inegável a beleza que tem. As cores das folhas que se prolongam pelo chão, o por do sol mais afogueado que nunca, as nuvens cheias de tufinhos de lã e a brisa do vento a refrescar-nos as ideias. Hoje repensei sobre esta coisa de não gostar do outono. E é principalmente porque é o prelúdio do inverno. Mas o outono não tem culpa nenhuma de ser o que é nem do que vem a seguir. Se eu soubesse efetivamente viver um dia de cada vez não rosnava ao outono. Saberia apreciar as suas belezas e as suas excentricidades. Ainda não consegui aprender a viver um dia de cada vez. Nem a tirar a murchice do peito independentemente do que possa acontecer. Ainda não aprendi a encarar cada dia que começa como se fosse o último. Isto parece um pensamento tolo mas não é. É um pensamento de grande sabedoria. Li algures, nem me lembro onde, mas relacion