De vez em quando o meu coração sai fora do peito. Deixa um
lugar vazio. Cheio de nada. Vai espreitar à janela. Vai ver se existem outros
corações como ele, a espreitarem, a ver se encontram o que lhes falta. Quando
se espreita à janela de uma casa vazia, vê-se fora uma multidão que ainda torna
mais vazia a casa da janela onde se espreita.
A janela de onde o meu coração espreita tem uma vista
colossal sobre a rua da amargura. Da janela vêem-se outros corações a
espreitar. Uns despedaçados, outros partidos. Todos os corações inteiros e de
saúde encontram-se dentro do peito onde pertencem. Quanto muito, passeiam de um
peito ao outro quando se trocam palavras de amor. Não espreitam à janela de
casas vazias. Mas uma casa vazia torna-se muito grande, muito solitária e muito
fria para que um coração rasgado possa estar sozinho em paz a sangrar. Tem que
se entreter e vai espreitar à janela. Tem que ver se encontra um outro coração
com quem possa partilhar as mágoas. E faz adeus aos outros corações que também
espreitam de outras janelas. Uns respondem outros não. Uns são tímidos e têm
vergonha do seu próprio sofrimento. Sentem-se muito insignificantes e espreitam a medo por detrás das cortinas. Fazendo
de conta que ninguém os vê. Outros escacaram as janelas com esperança que
algum outro coração despedaçado queira fazer par com ele. E dores sofridas a
dois sempre são mais fáceis de carregar. Divide-se o peso. Divide-se a solidão.
Se os peitos vazios se vissem com os olhos de ver, tanto
espaço oco havia a passear por aí, de um lado para o outro. Se os corações se
vissem à janela, haveriam de se ver luzinhas vermelhas a cintilar em todos os
edifícios. A sorte, para não se ver tanto vazio nem tanta tristeza, é que estas
coisas só se vêem com os olhos da alma. É mesmo a sorte. A de quem não vê e a dos
corações que sempre podem ter alguma privacidade no seu abandono. E os peitos
vazios parecem compostinhos e não dão parte fraca. E assim se vai virando as
páginas dos dias. Fechando os olhos ao que tanto magoa. Porque se sabe que
aquilo que parece uma imagem tão linda, de luzinhas vermelhas e cintilantes nas
janelas, é de facto, sinal de que os corações não estão onde deviam e em vez
disso, estão em sofrimento. Nem tudo o que brilha é ouro. Nem todo o sorriso é
de alegria e nem todo o peito cheio é de amor. Tantos peitos cheios de vazio
até não poderem mais! Tantos corações exaustos de estarem à janela dias e
noites a fio. Incapazes de voltarem para o peito onde pertencem. Mais vale o
frio da janela do que a força da mágoa. Do que a escuridão do peito que teima
em ficar fechado. Quando se ama, o coração aprende como se sai do peito. Como
se vai até ao peito do outro. Mas quando se sofre por amor, o coração teima na
mesma em sair, nem que seja para se distrair na janela. E quem tem coração
sofre duas vezes: perde-o e ganha um vazio no peito que é maior do que si
próprio. Um vazio que galga pela alma adentro. É deixa-lo galgar até perder
a força, até voltar para trás como no recuar das ondas. Não vale a pena fazer
de conta que esse vazio não existe. Mais vale assumi-lo sem alarido demais nem
de menos. Deixá-lo andar até se cansar. É o que faço para que o meu vazio não
me vença e para que seja eu a vencê-lo. Vou devagarinho tentando enxotá-lo e,
em cada passo que dá atrás, eu encontro espaço para a esperança e para a saudade que
sempre são emoções mais gentis e muito mais produtivas. E vou dando luz ao
peito, abrindo-o para que o meu coração possa novamente encontrar um espaço
confortável para se aninhar. Para que encontre outra vez uma morada bonita e serena. Sem o sobressalto da ausência e
da dor. A esperança e a saudade fazem-lhe muita companhia, da boa. Passam serões
a reviver lembranças bonitas com a esperança de as materializar outra vez. E as
páginas viram-se com menos esforço. Um coração que se quer também curioso, em
vez de espreitar à janela, passa a querer espreitar o virar da página para ver
se o dia seguinte traz um vida nova, cheia de esperança. O virar do dia traz 24
horas de esperança. E esta é uma certeza tão grande como aquela que garante o
nascer do sol em cada madrugada.
Quem dera que todos os corações estivessem onde deviam: no peito de cada um. A começar pelo meu...
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