Entre mim e
o meu coração existem sempre divergências. Tenho um coração muito intenso, que
sente tudo ao milímetro. E com ideias próprias. Com vontade própria. Só faz o
que quer. É um órgão fundamental mas muito difícil de gerir. A normalidade dos
corações cumpre a suas funções no corpo e na alma e as pessoas levam a vida
para a frente. O meu coração é tudo menos normal. Anda sempre num desassossego.
E consegue acertar sempre ao lado do que poderia ser um bom caminho para uma
vida mais descansada.
Neste momento
estou em luta com o meu coração. É uma luta latente, que pouco se nota. É
cozinhada a banho-maria. Vou aguentando, aguentando, aguentando até explodir.
Até não ser capaz de aguentar mais. Bem sei que os meus limites têm dilatado
com a idade. Com a experiência de vida. Com a paciência que vamos aprendendo a
ter ao longo do caminho. Mas não sei quando chegarei ao ponto de não haver
retorno. De não ser capaz de aguentar as tropelias todas que o meu coração
inventa.
Entre mim e
o meu coração há um fosso muito grande. Um fosso que eu tento manter para não
me deixar inundar pelas suas marés cheias. Pelos seus desaguamentos. Só porque
não sou capaz de os escoar de uma forma natural e positiva. Não me é possível.
Faço o que posso mas não me é possível despejar o amor que tenho em quem amo.
Porque a vida assim não o permite. As circunstâncias não deixam. E as
linguagens são diferentes. De vez em quando farto-me das minhas próprias
palavras de aceitação, de paciência, de compreensão das diferenças, etc. De vez
em quando farto-me de passar a vida a compreender e a aceitar. E a dizer o que
sinto e o que para mim é importante com carinho e com doçura. Dá igual. Cada um
só capaz de fazer o que é capaz. E só é capaz de ouvir os outros se isso lhe
fizer sentido. E ninguém pode dar o que não tem, o que não sente. Eu entendo
isto tudo. Mas de vez em quando, farto-me de entender. Farto-me de me colocar
tanto no lugar os outros e farto-me de me sentir tão isolada no meu próprio
lugar. Parece que quando se parte a loiça a malta ouve melhor. Presta mais atenção
e acorda para o mundo. Mas eu detesto, em matéria de sentimentos, tudo o que
seja cobrado, imposto e por obrigação. Isso não existe na linguagem do meu
coração nem da minha cabeça. Eu sei que sou diferente e esquisita. E neste
ponto, estou em completa sintonia com o meu indomável coração. Tudo o que
recebo de afeto, quero que seja oferecido, gratuito e de completa vontade. Os
afetos têm que ser sempre oferecidos de coração aberto, com alegria. Nunca a
pedido.
O meu
coração é ainda mais exigente do que eu. Eu tenho tentado melhorar diariamente algumas
características da minha personalidade. Nomeadamente a exigência. Sempre fui
muito exigente comigo própria. E tenho procurado aliviar esta característica,
dando-me alguma folga e procurando aliviar a pressão que sempre impus sobre mim. Quando conseguimos fazer isto connosco, conseguimos também não ser tão
exigentes com outros. Conseguimos não projetar tanto estas coisas em quem está
à nossa volta. Quando baixamos os níveis de exigência, amamos melhor. De forma
mais incondicional. Aceitamos melhor a forma de amar dos outros. Não pedimos
tanto em troca. O meu coração é que ainda não se convenceu desta coisa de
aceitar as coisas como elas são e pronto. De aceitar a forma dos outros se relacionarem
connosco. O meu coração continua um bocadinho exigente. Não entende como é que
se gosta das pessoas sem se cuidar delas. Sem se dedicar um bocadinho de tempo.
Sem se querer saber como elas estão. Procuram-se para fornecer nutrição. Sem se
nutrir de volta, de afeto. Vamos lá buscar coisas e não damos nada. O meu
coração não se consegue convencer sobre a veracidade destas formas de gostar.
Diferentes das dele.
De repente,
ao escrever este texto, neste exato momento, na rádio, está a passar uma música
que eu adoro e que tem tudo a ver, uma música do Caetano Veloso e diz assim: “quando
a gente gosta é claro que a gente cuida, fala que me ama só que é da boca para
fora, ou você me engana ou não está madura, …, onde está você agora?”. Fala
exatamente desta coisa da qualidade do amor que se dá. E de como um dia nos
aborrecemos de alimentar sem receber nada em troca e vamos à nossa vidinha. O
amor incondicional é qualquer coisa de muito difícil. Parece-me que só o Céu é que
é capaz de nos amar incondicionalmente. Nós apenas andamos lá por perto a
descobrir o conceito sem o conseguir vivenciar na prática. Amor sem nenhum tipo
de condição, é uma dádiva de Deus. E ando aqui aos piparotes com o meu coração
para o tentar domar um bocadinho e fazer com que lhe entre nas suas válvulas,
este conceito de incondicionalidade, de amor independente de tudo o resto. Eu e
o meu coração discutimos à grande. Todos os dias. Somos muito amigos mas
divergimos que nos fartamos. Porque ele cansa-me. Faz-me doer todos os dias.
Peço-lhe calma mas ele não tem. Diz que não é capaz de amar calmamente. Ou ama ou
não ama. E quando ama é à séria. E quando se rasga, quando se parte, vem para o
meu colo pedir aconchego. E eu estou tão cansada de passar a vida a tentar
curar-lhe as feridas. A aconchega-lo. A dar-lhe mimos. Tenho que lhe dar mimos.
Um coração tão voraz precisa de mimos. Nem sempre tenho esta capacidade de
cuidar do meu coração como ele me pede. Mas eu sou só uma e de vez em quando
preciso de um minuto de sossego. Também preciso de sobreviver no meu mar de muitas
coisas. E as minhas interioridades são imensas e solitárias. Na maior parte das
vezes resolvo problemas, toco a vida para a frente e vou andando, procurando
viver um dia de cada vez. Às vezes já não tenho a capacidade de tratar do meu
coração. De vez em quando, apetecia-me desligá-lo. Desistir de tudo o que o faz
sofrer. Porque o que o faz sofrer também me faz sofrer a mim. Isto tudo
funciona em cascata. O que dói no meu coração tem reflexo na minha
racionalidade, no meu corpo e na minha alma.
Na verdade, eu não trocava o meu coração por nada. Ele é muitíssimo inteligente mas é muito cansativo e gostava que ele se desligasse um bocadinho de vez em quando. Estou farta de andar sobre esforço, sobre pressão. Sinto-me como se andasse sempre a colocar-lhe paninhos quentes quando na verdade ele anda mortinho para explodir. Para qualquer lado. Para sim ou para sopas. Ele tem um feitio pior do que o meu. E quando marra, não há nada que o desferre. Claro que é até ao dia. Ele vai, vai, vai até à exaustão. No dia em que exausta definitivamente, fecha a torneira. E não há nada que o faça voltar atrás. Quando já não há pinga de sangue, desiste e deixa ir. E eu receio esta faceta do meu coração. Pode emergir a qualquer momento. Apesar de contemplativo, explosivo e intenso, o meu coração também é muito introspetivo. Pensa muito sobre os afetos. Reflete muito. E quando seja à conclusão de que não vale a pena, de que que não vale o sofrimento, abandona. Se se sente abandonado, também se deixa abandonar. Se se apercebe que não o sabem prender, deixa-se ir. É um coração muito intenso mas muito escorregadio. Gosta de se sentir cuidado, de forma delicada e ternurenta mas firme. Gosta de se sentir especial. Quando sente que nem entra na lista das prioridades ou que é sistematicamente relegado para vigésimo plano, vai-se embora. E as pessoas nem percebem o que aconteceu. Porque estavam habituadas a receber, a contar, a serem bem mimadas e cuidadas, sem esforço, sem fazerem nada por isso. E no dia em que lhes falta o que não valorizaram, ficam espantadas e não sabem que bicho é que me mordeu. Melhor, que bicho é que mordeu ao meu coração. Apesar de ser explosivo, o meu coração também é suave. E apesar de se desinquietar por dentro, não mostra muito isso por fora e vai amando com doçura, com disponibilidade. Mostrando sem violência, o que o deixa feliz e o que o acalenta. Como a malta não ouve muito bem o que é dito suavemente, não o levam a sério. Não ligam. Acham que nada faz mal. Mas a indiferença vai corroendo. E afinal não é uma mordidela de um bicho que espantou o coração, foi mesmo a corrosão de uma ausência de afetos. A ausência de cuidado, corrói. Só compreender o lado do outro sem se ser compreendido, não é fácil de gerir. Uns dias é mais do que outros. Nuns dias é fácil de levar e o amor é maior do que a mágoa toda. Noutros dias é mais difícil de engolir, o amor fica amachucado pela indiferença e pela ausência. A ausência, que não tem corpo, é muito pesada. Causa muita amolgadela. Oprime o coração no peito. O coração, quando se habitua a lidar com a ausência, das duas, uma: ou entrou em estado de aceitação e consegue ter paz, ou desiste. Não vejo outra alternativa. Tenho medo que o meu coração esteja à beira de ter um treco-lareco. E se lhe der uma coisinha má, desiste.
E a minha luta é no sentido contrário, é no sentido da aceitação e da paz. Quando se aceita a realidade tal como ela é, tudo fica mais fácil para todos. E eu consigo ter aquilo que mais anseio: paz no coração. Consigo andar serena apesar do mundo andar ao contrário ou de cabeça para baixo. Um estado de espírito "zen" é a coisa mais maravilhosa. Quando se aprende a aceitar aquilo que não se pode mudar, ficamos de bem com a vida, de bem connosco próprios e de bem com os outros. Gostava tanto que o meu coração enfiasse isto na sua dura carcaça...ele ouve mas não me obedece nem por nada. Malvado!
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