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No meu avesso

No meu avesso há uma dimensão que não sei definir. Não lhe consigo encontrar fronteiras para além dos contornos do meu corpo.

No meu avesso encontro as costuras e as cicatrizes, âncoras dos rasgões da superfície. Tatuagens e brasões, marcas de vida.

No meu avesso há um universo quase infinito, onde não sei onde começa nem onde acaba. Onde tudo flutua ou gravita sem ordem definida, sem uma organização galáctica que os defina.

No meu avesso há o reflexo de tudo o que sou, penso e sinto. É onde se guardam os registos que querem ficar registados e onde se esquecem os que não querem ser lembrados. Tudo sem a minha interferência.

No meu avesso existe uma outra como eu que ainda não conheço bem, que não descobri na totalidade. Que de vez em quando me surpreende ou me intriga.

No meu avesso há uma caixinha de surpresas que também não tem fundo. É labiríntica e intrincada. Pode transformar-se em quebra-cabeças ou em cubo mágico. Imprevisível, misteriosa e improvável. Por vezes nem é uma caixinha de surpresas, é uma cartola de onde saem muitos coelhos e muitas pombas brancas. E lenços vermelhos de sangue. E lenços brancos de paz. Às vezes são lenços de adeus. Outras vezes de boas vindas. Depende. Também desta cartola saem arcos-íris, dependendo das conjunturas.

No meu avesso há um ecossistema inteiro com oceanos, sois, luas, vendavais, trovoadas, florestas amazónicas, zonas polares e desertos escaldantes. Tudo em perfeito convívio e harmonia. Quando o caos pode viver em paz, encontra a sua própria ordem. Aquela que o deixa feliz. Eu deixo o meu avesso em paz. Só o observo e contemplo. Ajuda-me a conhecer o direito, a superfície de mim própria.

Afinal, eu e o meu avesso somos apenas como o côncavo e o convexo que se complementam e completam. E não existem um sem o outro.

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