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Como chuva em agosto

No final do texto, partilho o soberbo Gonçalo Salgueiro a cantar o também soberbo "Como a chuva em Agosto". 

Já ouvi para aí umas 300 vezes de seguida. Todos os estados de espírito da minha vida têm uma canção, uma música, um fado. Qualquer coisa que se cante ou que se oiça. É outra das minhas formas de tirar as dores do sistema. De expurgar as tristezas. Garanto que ajuda. Oiço até à exaustão. Da mesma forma que deixo doer até que não seja possível doer mais. É assim. Tudo na vida tem que se tratar. De uma forma ou de outra. Demorando mais tempo ou menos. De golpe ou com preparação. Da forma que puder ser ou que fizer mais sentido.

Tal como a chuva em agosto, rápida e passageira, normalmente intempestiva e inesperada, a vida também assim se apresenta. Acontecem-nos coisas boas que não esperamos. Estamos distraídos da vida e ela faz-nos umas surpresas fantásticas. Principalmente, quando estamos fechadinhos no nosso casulo. Acontece-nos umas lufadas de ar fresco. Aparecem umas florinhas novas no nosso jardim. Nem demos conta que lá tinham caído sementes. Não percebemos. E, de repente, aparece a primavera e florescem uma flores lindas. Flores diferentes daquelas que ainda não tínhamos aprendido a cuidar como deve de ser. Por serem tão diferentes são tão lindas!!! Mas não há bela sem senão...não as conseguimos entender na totalidade. São umas florinhas que abrem e fecham as suas pétalas conforme lhes dá na bolha. E deixam alguma consternação no ar. Quando as pétalas se fecham, ninguém as sabe abrir. E voltam a abrir apenas quando lhes apetece. Entretanto, o resto do jardim fica à toa. Não sabe lidar, não sabe gerir, não sabe o que fazer. E quando as florinhas voltam a abrir as suas pétalas, voltam a brilhar no jardim e este entra novamente em equilíbrio. Não obstante o equilíbrio restabelecido, no jardim, existem umas árvores seculares e experientes que tudo observam e tudo sabem. Apesar de respeitarem as escolhas de todas as flores e de todas as plantinhas, estas árvores não se privam de dar um ou outro conselho. E dizem às tais florinhas especiais que abrir e fechar as pétalas conforme lhes apetece sem pensarem nos outros elementos do jardim, pode não dar bom resultado. Um dia abrem as pétalas e não têm para onde olhar. Já não há jardim. Ou então já é um outro jardim. As outras plantas e as outras flores mudaram de poiso. De interesse. Mudaram de vista. De que vale ser-se uma flor tão bonita, tão diferente e especial se se fecha sobre si própria, se só se abre e brilha quando lhe dá ou quando é capaz?!

Existem muitas outras flores também com as suas especificidades, com os temperamentos, com a seus aromas, brilhos e caprichos. E que também precisam de tudo o que as flores especiais precisam. Porque afinal, todas as flores são especiais. Umas mais para a direita, outras mais para a esquerda, umas mais resistentes e outras mais frágeis, umas mais de estufa e outras mais de exterior. Mas uma flor é sempre uma flor. Tal como a chuva é sempre chuva. A sua especificidade, a sua importância e relevância depende essencialmente do mês do ano. Por vezes piora o que já é mau. Gela. Outras vezes refresca o que o calor quase sufoca. Na verdade tudo tem um lado e outro. E da mesma forma que a vida nos prega uma boa surpresa de forma inesperada, também se nos distraímos, tudo muda, tudo passa, como diz a canção. Como a chuva em agosto. Passageira. E é como na natureza, como o outono leva o que a primavera trouxe. Como o verão é esplendoroso com aquilo que o inverno há-de consumir. Assim é a vida. Sem que ninguém tenha culpa. Às vezes, é verão de dia e, de noite, no coração, neva que se farta. E não há maneira de mudar a estação do ano cá dentro. Por muito esforço que se faça. Por muito que se tente. A estação só muda quando Deus quer. E Deus, que quer o nosso bem, sempre nos ensina qualquer coisa sobre a meteorologia no coração. Sobre como tudo isto não é uma ciência previsível. Como não controlamos nada. Como a neve nos ajuda a dar valor ao ameno da primavera ou ao calor de verão. E só quando temos as estações do ano muito bem aprendidinhas e bem experienciadas é que a coisa está em condições de mudar. Quando já estamos em condições de fazer escolhas de acordo com o tempo que deixa o nosso coração mais feliz e confortável. Por vezes a escolha está em diminuir a amplitude térmica. Nem tão quente nem tão gelado. Escolher o ameno. Confortável. E por vezes, o ameno está perfeitamente ao nosso lado. É-nos oferecido, está ali mesmo ao alcance, ao dispor, a pedir para ser escolhido. É só querer. Não dá trabalho nem traz sofrimento. Outras vezes é escolher outra coisa qualquer. Ou só inquietação enquanto não se sabe que coisa será essa. 

E deixa-se chover. E deixam-se as florinhas como elas quiserem estar. Em liberdade. É tão fácil deixar chover. É tão fácil deixar as florinhas abrirem ou fecharem como entenderem. É fácil demais apesar do preço a pagar. Não se segura a chuva. Não se interfere na natureza das flores. Eu, pelo menos, não interfiro. As florinhas conhecem-me bem, pois dou-me a conhecer. Assim, podem exercer a sua liberdade em pleno. Sabendo o que me faz feliz e o que me magoa. Assim, podem escolher em liberdade, a forma de lidarem comigo. E eu deixo que aconteça o que quiserem. Sempre deixo ir o que quer ir. Nunca prendo. O que me dói, é problema meu. Se se recupera ou não, é problema meu. As consequências em mim, são problema meu. Mas sempre deixo ir o que quer ir. Sem choro nem ranger de dentes. Sem espernear. Não quero nada que não queira, de livre vontade, estar comigo. Mereço melhor do que isso. Seria incapaz de reter alguém. Nem as minhas crias eu seguro ou obrigo à devoção. Nem à minha cadela. A beleza da coisa é gostarem de mim tal e qual como sou e, mais importante do que isso, apesar do que sou. Com tudo. E assim, não segurando, desprendendo as pessoas, cada mimo é mesmo um mimo. Cada beijo é mesmo um beijo, não é outra coisa qualquer. Quem está, está porque gosta, porque quer, porque ama. Não existe amor sem liberdade. Até a minha cadela só me dá mimos quando quer. Não lhe puxo a trela para o fazer. Não me saberiam a nada, esses mimos. Seria assim como chover no molhado. Não adianta nada. Não traz alegria. É morno. Não gosto de morno. Gosto de tudo o que é autentico. Mesmo que magoe e que eu decida que me faz mal. E mesmo que abandone o que me faz mal, respeito-o por ser de verdade. Chuva gelada de janeiro ou chuva quente de agosto, é sempre chuva a sério. Verdadeira. Apesar de ambas me molharem, deixo as gotas caírem com o respeito e a admiração que me merecem. 


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