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O que eu gostaria...

Gostaria que me conhecesse como se conhece o sabor das maçãs e o cheiro da maresia. Gostaria de ser inconfundível só por ser eu própria. Gostaria de o poder iluminar da mesma forma que uma estrela pequenina ilumina o céu inteiro depois do sol se pôr. Gostaria que visse o meu avesso sem eu ter que lho mostrar, como se vê a areia por baixo da água salgada. Gostaria que o meu silêncio, para si, fosse sempre cheio de palavras. E gostaria que as minhas palavras fossem sempre cheias de amor. Cheias de música, daquela que embala e que nana. Gostaria de ser a paz que lhe falta e a metade que o serena. E gostaria de ser a liberdade que faz parte da sua essência. Daquela que prende o olhar de tão livre que é. Gostaria de ser simplesmente sua. E não por posse, domínio ou por qualquer espécie de grilhão. Apenas porque sim. Por amor. Por não querer ser de mais ninguém. Por querer encostar-me no seu peito como quem encosta a cabeça na almofada que já tem a forma certa. Por me sentir em casa. Por sentir que pertenço sem dúvidas, sem medos e sem reservas. Só pertencer, inteira, sem fragmentos. Sendo como sou, ou, melhor ainda, apesar do que sou. Só por conseguir descansar os pensamentos, o coração e a alma. Onde consigo dormir com leveza, como quem quase flutua.

Gostaria que os meus olhos cor de terra se encontrassem com os seus olhos cor de mar. Onde uns começam, os outros acabam. E gostaria que os pontos de encontro de ambos fossem sempre o princípio e fim de cada um. Como a praia. Onde o mar termina e a terra começa. Ou vice-versa. E a praia é redonda. Porque as águas ondulam ao chegar à areia. E porque a areia se aduna para as receber. As formas redondas são sempre macias e suaves. Confortáveis. Contentoras. Sem sobressaltos. E amor também deveria ser redondo. Onde o que ama se ondula no que é amado. Simples. O amor, só por si, deveria bastar. Como a areia basta ao mar. Como o sorriso basta ao rosto. Como o sabor simples da maçã basta ao palato.

Gostaria de ser como o arco-íris que aparece sem se fazer anunciar. Que embora quase sempre oculto, não deixa de existir, encantador e colorido. E quando surge é sempre um bom presságio. Cruza o céu. Embora não se saiba onde começa nem onde termina. Diz-se que no fim do arco-íris existe um enorme tesouro. E tudo o que pode ser imaginado pode ser maravilhoso. Talvez seja um tesouro porque ainda ninguém o viu nem conseguiu encontrar. Também o meu coração, o meu âmago, é tão difícil de se descobrir. Não se entrega a quem o quer. Não se dá a quem o pede, nem vai ao encontro de quem o procura. O meu coração vive num casulo translúcido que, dependendo da luz que o ilumina, se descobre mais ou menos. Dependendo essencialmente da luz do amor que sente. E isso deveria bastar. Só o amor deveria ser suficiente para os corações se descobrirem, se desvendarem. Para saírem de casulos translúcidos e, tal como as crisálidas se transformam em borboletas, ganharem asas e voarem ao sabor dos sentimentos. Sem pressas, sem rédeas e sem amarras. De forma livre e cantarolante. Com música. De forma simples. Parece que a simplicidade é uma ciência. É tão difícil de alcançar. Há sempre qualquer coisa a complicar aquilo que por natureza é simples. Há sempre chaves para fechar e trancas para trancar. Travões e cuidados. Medos e dores. E tudo o que é simples deveria ser muito libertador. O amor, sendo tão simples, deveria ser libertador.

Gostaria de ser um raio que perfura as nuvens e que rasga o céu para que o sol todo possa brilhar. Gostaria de ser o fio de água que corre pela encosta abaixo até encontrar o caminho que a leva ao seu destino. É maravilhoso como a água sempre encontra um caminho. Sempre. Tenho a esperança que o amor também seja transparente, simples e fundamental como a água. E, tal como ela, que consiga sempre encontrar o seu caminho. Mais fácil ou mais tortuoso. Mais curto ou mais longo. Mas que encontre o seu caminho. Gostaria de ser o caminho que chega ao seu coração. E gostaria que esse caminho fosse simples, direto e sem tortura. 

Gostaria de ser a energia que alimenta sua intensidade. Aquela intensidade que é a chama da vida. Que dá alegria a cada acordar como o nascer do sol alegra o dia e aquece cada alvorada.

Gostaria que me olhasse com olhos de calma. Os olhos de calma olham com a serenidade necessária para se entender o que não é dito. Para se ver o que se reserva. Os olhos de calma sabem ler o código da alma. Mas só olhos de amor são olhos de calma. Apenas o amor sabe a chave para decifrar o que o outro amor codifica. 

Gostaria que me olhasse com olhos de mar. Daquele mar quase infinito que banha toda a terra. Que não deixa estreito por onde escapar. Que contorna as escarpas, os cabos e os promontórios e que lhes arredonda as farpas. Um olhar de mar, serena qualquer costa, por mais difícil e escarpada que seja.

Gostaria que me olhasse com olhos de fogo. Daquele que é capaz de incendiar a neve mais fina e branca. Daquele fogo, o único, que é capaz de fazer parar outro fogo. Daquele que liquidifica as mais sólidas estruturas. Que transforma em cinzas todos os monstros que se escondem debaixo da minha cama. E todos os esqueletos que se escondem nos meus armários.

Gostaria que me olhasse com olhos de pedra. Um olhar de pedra dá a força exata para resistir a qualquer intempérie. A qualquer terramoto ou tornado. A qualquer vendaval. Um olhar de pedra alavanca o mundo. O meu mundo.

Gostaria que me olhasse com um olhar de criança. Com a pureza de quem quer descobrir o porquê das coisas. Em que o sim porque sim e o não porque não, não são respostas aceitáveis. 

Gostaria que me olhasse com olhos tagarelas. Com a tagarelice própria de quem quer partilhar tudo o que é partilhável. Com a avidez de palavra, de ritmo e de rima que constituem a poesia. A poesia é a palavra escrita com alma. É a escrita dos milagres. 

Gostaria que me olhasse com olhos de milagre. Com aquele olhar que consegue ver a beleza onde não é evidente, a bondade onde existe a ira, e a sabedoria onde existe o impulso. Quando nos olham com olhos de milagre, os milagres acontecem. E tornamo-nos maiores do que a nossa própria alma. E quando nos olham como se fossemos melhores do que aquilo que somos, tornamo-nos efetivamente melhor do que aquilo que somos. Há um potencial de melhoria que acontece. À força do milagre de cada olhar seu.

Gostaria que me olhasse com olhos doces. Com aquela doçura complacente que aceita todas as imperfeições. Que não julga nem critica. Que compensa a acidez dos olhos do mundo. Que compensa a exigência do meu próprio olhar. Gostaria que me olhasse com olhos de açúcar.

Na verdade, gostaria que me olhasse demoradamente com os seus olhos. Com a disponibilidade suficiente para ver através da minha pele. Para olhar bem ao fundo de mim. Para ir ao encontro dos meus mundos por dentro. E para ter a certeza do que encontra. E para saber se verdadeiramente gosta do que encontra. Gostaria que o seu olhar fosse demorado e profundo.

E se eu pudesse olhar também demoradamente para os seus olhos, talvez pudesse ver o que eles refletem, o que são capazes de ler. O que o seu coração sente. O que a sua alma diz. Se eu pudesse olhar demoradamente para os seus olhos, seria capaz de saber se a melhor forma de o amar é deixar fluir ou se é desistir. Se é seguir na corrente ou selar o coração. Se eu o pudesse olhar profundamente, talvez fosse mais fácil pacificar-me e entender o que ainda não entendo. Talvez fosse mais fácil não entristecer e não me esvair de saudades.

Gostaria de saber o que verdadeiramente me dizem os seus olhos...fosse o que fosse e apesar dos pesares. E a verdade bastaria.

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