Hoje apetece-me escrever sobre a mais bonita forma de amor que existe: a amizade. Já escrevi inúmeras vezes sobre o assunto, mas a fonte é inesgotável. Cada amizade que partilhamos é única. Cada uma reveste-se de uma identidade própria. Cada amizade que nutrimos é diferente da outra. E isso é a beleza da coisa. Tive a sorte de há pouco tempo recuperar uma amizade muito bonita e importante. Daquelas em bom. E é das melhores porque sobreviveu aos desvios da vida. Por vezes o caminho prega-nos partidas que nos desviam do que verdadeiramente interessa. Neste caso em particular, com uma das flores do meu jardim, uma orquídea rara, houve, por assim dizer, uma hibernação do sentimento recíproco. Mas como tudo o que é forte e autêntico tem a mania de dar a volta por cima, aqui estamos de novo, com uma amizade fortíssima.
As orquídeas raras, sendo assim tão raras, apesar
da sua elegância e imponência, têm um coração de manteiga e uma sensibilidade
extrema. Possuem uma aparência esfíngica, mas o seu interior é de uma doçura extraordinária.
Uma doçura que a própria orquídea nem sempre reconhece e, reconhecendo, não
encara como sendo uma das suas maiores forças. Por vezes olha para esse mel
todo como sendo uma das suas fragilidades. E não gosta de o dar a conhecer.
Atrapalha-a. Fá-la ter medo de si própria. A minha orquídea ainda não realizou,
nas suas magníficas pétalas, que ter medo de si própria é uma das formas mais
sublimes de inteligência. De facto, somos os nossos piores inimigos. É a nossa
cabeça que tem por hábito estafegar os nossos melhores alicerces e a nossa
qualidade de vida. É na nossa cabeça que habita o medo. Pelo menos na cabeça
florida das orquídeas. Sendo o medo um organizador por definição, ou seja, é o
facto de termos medo que nos permite utilizar o instinto de sobrevivência. É o
facto de termos medo que faz com que preparemos as nossas defesas para o que
der e vier. E como sempre digo, ser corajoso, não é não ter medo. É fazer-se o
que tem de ser feito, indo-se com medo e tudo. Isso sim, é coragem. Esta minha
orquídea rara, já me deu muitas provas de ser uma pessoa corajosa. Vai com medo
e tudo. Quando recuperamos a nossa amizade, foi capaz de um dos atos mais
bonitos e corajosos que já vi alguém ter. Com a suavidade que a carateriza,
como boa orquídea rara que é, fez com que a amizade saísse de uma hibernação invernosa
e desse um salto direitinho para o verão, sem sequer passar pela primavera. Não
é coisa para todas as flores. Só é capaz deste salto quântico, uma flor que
seja verdadeiramente rara. Que tenha os valores no devido lugar, nas raízes e
no coração. E sim, as flores têm coração. São a espécie de toda a criação que têm
o coração mais bonito. Ninguém acredita que as flores, que tanta beleza e
perfume dão ao mundo, não tivessem coração. Têm. E normalmente é maior do que
elas próprias. Custam a dar conta dele. E aqui está o ponto mais frágil das
flores em geral, viverem esplendorosas, dando conta do enorme coração que têm. Não
é fácil viver em beleza no mundo em que vivemos. As flores entendem que a sua
missão primordial é encantar os outros e o mundo, dando-lhes beleza, perfume e
serenidade. Lamentavelmente, ninguém coloca na cabeça ou no coração das
florinhas que o seu objetivo primordial é encantarem-se consigo próprias. É
serem belas, mesmo se não houver ninguém para apreciar. O que é que isso
interessa? A flor deve ser bela em si própria, aceitando a sua condição. Esta
aceitação é o que faz com que os caules, apesar de serem mais finos ou mais
robustos, sejam à prova de bala. Não dependem do exterior. Dependem essencialmente
de si próprios. Se as florinhas tiverem esta noção verdadeiramente enraizada,
não há intempérie que as derrube. Aprendem a ser como os bambus, que vergam,
sempre que necessário, que acompanham o sopro do vento, por mais forte que
seja, mas não quebram. Sobrevivem e erguem-se de todas as vezes que quase vão
ao chão. Esta é a mestria de se ser flor. Preciosas por dentro e resistentes por
fora.
Nem sempre
uma florinha está no seu auge de resistência. Por vezes, precisa e deve pedir
ajuda aos jardineiros da sua vida. Qual é o mal? Nenhum. Por vezes, é
necessário deixar que lhe reguem os pezinhos, que a iluminem melhor, ou que se lhe
encontre uma estufa protetora e aconchegante. Uma estufa daquelas em forma de conchinha,
em que nada entra. Uma florzinha que se preze, deve saber aceitar o amor e a
dedicação que os jardineiros têm por ela. Um jardineiro à séria, sabe que nem
sempre as florinhas estão no seu máximo e que nem é natural que assim estejam.
Tal como o ciclo das estações do ano, a vida destas florinhas também tem
ciclos. Há ciclos de produzir beleza e perfume e há ciclos de recolhimento e de
se deixar tratar. Tudo faz parte da vida. É esta alternância de papéis que faz
com que os jardins sejam os lugares mais fantásticos do universo. Os jardineiros
dedicam mais tempo e mais amor às florinhas raras e sensíveis do que às suculentas.
E é assim mesmo. Cada uma no lugar a que pertence. E os jardineiros gostam e
aceitam as florinhas tal e qual elas são. E quando as orquídeas precisam de
atenção, há um batalhão de jardineiros que se organizam para as ajudar, da
forma que as orquídeas necessitarem. E não fazem juízos de valor. Principalmente,
a orquídea não perde nenhum valor aos seus olhos. Pelo contrário, numa relação
simbiótica perfeita, flor e jardineiro, complementam-se, ajudam-se e aprendem
mutuamente. Ninguém tem interesse em fazer amizade com catos do deserto, nem
com algumas espécies de suculentas. Absorvem tudo o que podem, existem sozinhas
e ainda picam se alguém se aproxima. Qual é a piada? São apenas sobreviventes
ermitas, isoladas do mundo. Quanto mais inóspito o ambiente, melhor se dão. Por
mim, dispenso este tipo de plantas no meu jardim e parece-me que partilho este
sentimento com todos os jardineiros que conheço. Quanta beleza existe numa flor
sensível e amorosa, que precisa de sol, de água, de companhia e de bom trato.
Adoro flores, dignas desse nome, que, só por serem quem são e como são, me dão
tanta alegria. São o que são, verdadeiramente. E isso é o que me interessa. Uma
rosa sem espinhos, desconfio. Se um girassol gostasse de luz artificial, desconfiaria.
Se um nenúfar não tivesse raízes, torceria o nariz. Se uma orquídea não perder,
de vez em quando, as pétalas, alguma coisa se passa. O que faz parte do ciclo
de vida destas flores particulares e raras é o facto de perderem as pétalas, em
determinados ciclos de existência e, depois, quando voltam a nascer, são ainda mais
bonitas e mais esplendorosas. E assim se define uma orquídea. Tal como a fénix,
renasce das cinzas, sempre mais poderosa e iluminada. Gosto muito de orquídeas (e
de fénixes também).
As orquídeas
ensinam-me muitas coisas, principalmente aquelas que eu preciso de aprender e
de melhorar. Ensinam-me a importância da mansidão e da serenidade. Ensinam-me a
ser elegante e delicada (pelo menos tentam, nem sempre com o melhor dos
resultados). Ensinam-me a escolher palavras suaves para dizer coisas duras. Ensinam-me
a escutar cada vez mais e cada vez melhor, a voz da emoção, e a colocá-la ao
serviço da inteligência. Ensinam-me, diariamente, a ser um jardineiro a sério, em
vez de ser uma espécie de trator. Ensinam-me que cada flor deve ser tratada
conforme necessita e não conforme eu penso que é necessário. Mas principalmente,
o que esta orquídea rara também me ensinou, é que, de vez em quando, tal como o
ciclo das estações acontece, também os jardineiros oscilam entre serem
jardineiros e serem flores. Umas vezes são uma coisa e outras vezes, são outra.
E assim é a história de uma amizade verdadeira e preciosa entre uma jardineira
e uma flor. Trocam de papéis constantemente, sempre que tal é necessário, sem
que tenha de haver um decreto para tal. Basta um olho atento. Basta amor no
coração.
E, de vez em quando, não são uma coisa nem são
outra, são apenas duas extraterrestres a tomar um copo, a dizer uns disparates
e a rirem de si próprias!
Muito bonito e inspirador! Como sempre!!!
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