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Migalhas

Existem alturas na nossa vida em que as melhores decisões doem que se fartam. Em que a escolha tem que ser feita a pensar em nós e não apenas a pensar no bem estar dos outros, como de costume. Existem momentos em que temos que escolher entre amarmo-nos a nós próprios ou amar o outro. Sabendo que as duas coisas em simultâneo não são compatíveis. Sabendo que não nos mantemos íntegros e inteiros se persistirmos em amar sozinhos. Amar sozinho ou amar pelos dois é uma situação que tem os dias contados à partida. Não se aguenta durante muito tempo. Pesa mais do que aquilo que o nosso coração suporta. Por outro lado, no amor ninguém manda. Ninguém decide por quem se apaixona, nem ninguém tem culpa que o outro se tenha apaixonado. Mas estas histórias evoluem e alimentam-se de reciprocidade. Sem reciprocidade, sem equilíbrio, só amor não basta. E só amor de um lado então é que não basta mesmo. Quando um dá e outro recebe, não é dividir a coisa a meias. É uma relação unívoca, só com um sentido em que um se esvazia e o outro se aproveita. Com maior ou menor consciência disso. Pode acontecer que o outro, não nos amando, goste de ser amado. Gosta do amor que se tem por ele. Gosta de se sentir o maior dos bonecos da bola. E isso é legitimo. Nós é que alimentamos isso. Nós é que fizemos com que isso acontecesse. Nós é que cedemos sempre o nosso campo, demos a nossa tática e a nossa técnica e  emprestamos os jogadores. E ainda disfarçamos o resultado do jogo, se não for de feição, para que o outro não fique murcho. E no fim da partida ainda há direito a uma massagem para relaxar os músculos e uma toalhita quente. Tudo como deve de ser. Só mimo. Só coisas boas. Só coisas boas também cegam. Deixa-se de ver a pessoa por detrás do mimo. Só receber é inebriante. Não dá trabalho nenhum. É bom. E encara-se a coisa como se fosse inesgotável. Como se fosse incondicional. Aquilo que numa primeira fase pode fazer sentir gratidão, torna-se um hábito e instala-se. E depois fica o caldo entornado. Principalmente para o que tem os braços sempre abertos. Para o que só dá e não recebe. Quando nos cai a ficha, entende-se que a nossa cabeça tem que tomar uma decisão que favoreça o nosso coração. A nossa cabeça tem que sentir o que é melhor para nós. Tem que se sentir com a cabeça e pensar com o coração. É isso que ando a fazer. A procurar escolher o que é melhor para mim. O que me dá mais paz, o que me deixa mais completa e mais inteira. 

Por vezes parece-nos que o pouco é melhor que nada. Pode ser assim no que diz respeito a coisas materiais. No campo dos afetos, pouco é pouco e nada é nada. Por vezes o pouco molesta, magoa, tira o sossego, não deixa evoluir. Alimenta a resignação, o medo, o sofrimento. O nada é pacificador. É resolutivo. Dói tudo de uma vez e não anda a sangrar aos bocados. Mais vale ter uma hemorragia aguda, onde se aplica um bom torniquete do que ser hemofílico a vida toda. Não há dúvida. Às vezes é necessário cortar-se o mal pela raiz. Ou cortar-se a raiz do mal, também pode ser assim, conforme a situação. Ando  a refletir sobre o assunto. Sobre o que me faz bem e o que me faz mal. Sobre em como uma migalha apenas serve para nos aguçar a fome. Uma migalha é uma coisa muito triste. Dá-nos a sabor, o cheiro e a cor do que tanto gostamos mas não nos dá mais nada. Dá-nos o vislumbre do que queremos mas que não nos pertence. As migalhas só servem para serem varridas. Um conjunto de migalhas não faz um alimento. Esse amontoado tosco de partículas não tem forma. Eu não gosto de migalhas de espécie nenhuma. Até porque sou pouco morna, sou a frio ou a quente. E quando começo a saber lidar e a sobreviver com migalhas, estou a ir contra mim própria. Estou a dizer que um pouquinho me basta. Que não tenho direito a mais ou que não preciso de mais para ser feliz. O caneco é que eu sei o que preciso para ser feliz. Eu sei o que preciso. E uma das coisas é amar-me como deve de ser. É cuidar de mim. É não me diminuir. É não deixar que o amor me faça perder a lucidez. Esta é uma grande luta. Porque uma das especialidades do amor é turvar, bem turvadinha, a lucidez. Faz parte. Com o amor vem sempre atrelado o encantamento, aquele que nos impede de ver as coisas como elas são. Mas o tempo tudo clarifica, tudo mostra e tudo resolve. O tempo é o azeite da verdade. Faz com as coisas se mostrem como precisam de ser vistas. O tempo é maravilhoso...e eu não estou em tempo de migalhas. Preciso de alimento como deve de ser. Também preciso de braços abertos na minha direção. Também preciso de colo. O colo é fundamental na vida de qualquer pessoa. O bom colo é o melhor lugar do mundo. Mas existe ou não existe. Assim um faz de conta que existe só aguça a falta dele. É fazer de conta que se tem e, na verdade, não se tem. Quando não há faz de conta, já se sabe qual é a realidade. Não há margem para dúvida. No campo dos afetos não há o gostar e não gostar ao mesmo tempo. Não há o querer e o não querer. Ou se gosta ou não se gosta. Ou se quer ou não se quer. E quando se quer há sempre uma maneira. Quando não se quer, há sempre uma desculpa. Claro como a água.
Bem sei que por vezes há um banho-maria que vai deixando andar as coisas a um nível mínimo que permite ir andando, com meia anestesia. Mas até o banho-maria evapora a água toda ou sobreaquece. Nada do que é morno dura grande tempo. Ou aquece ou arrefece. Como esta questão da temperatura é uma questão interna, minha e dos meus mundos, vou ter que a resolver. Eu tenho poder para mudar a minha vida, só a minha. Não posso mudar a vida de mais ninguém. E ninguém é responsável pelo facto de eu ser eu, tal como sou. Parece que dá medo. Parece que eu não sou um processo tranquilo. Talvez transparente demais para poder ser vista como inócua. Pelos vistos, muito fácil de se gostar mas muito difícil de se amar. Cada um carrega a sua cruz. Estou a preparar-me para, mais uma vez, carregar a minha por mais uma estação.

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