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Uma palavra muito feia

Procrastinar. Hoje vou escrever sobre esta arte de “(…) deixar para depois; fazer mais tarde, adiar, etc.”

Que palavra feia! Parece um palavrão daqueles bem cabeludos! Um verdadeiro palavrão, ao ser dito, normalmente causa alívio a quem o diz. De vez em quando sai-me um pela boca fora e faz-me um bem desgraçado. Baixa-me a pressão e deita-me água na fervura. Funciona assim como um calmante em modo de SOS. Agora esta palavra feia – procrastinar – tem exatamente o efeito contrário em quem a usa. Carrega a pressão, aumenta o stress, a ansiedade e o sofrimento. Também tem um significado muito impostor: parece que causa algum alívio momentâneo quando deixamos para depois qualquer coisa que nos chateia. Mas esse alívio é mesmo momentâneo. É como quem pára a ganhar balanço para depois se atirar contra a parede com muito mais força, fazendo muito mais estrago. Já entraremos por esta questão adentro. 

Hoje falei com alguém (muito importante e que mora no meu coração) que anda com esta atitude na baila. Se calhar até anda a tomar consciência das consequências de tomar “procrastina” todos os dias ao pequeno-almoço. Depois de uma noite mal dormida, a pensar na vida, toma-se uma boa dose deste remédio. E nesse dia, parece que o coração e a cabeça ficam um bocadinho mais aliviados. Mas, logo à noite, os fantasmas e os medos voltam. A tal da “procrastina” é um remédio atitudinal que só alivia momentaneamente e que tem uns efeitos secundários levados da breca. Deve ler-se a bula para verificar se vale a pena gastar-se disso lá em casa.

Parece-me que é uma decisão que se toma quando se anda muito ocupado a fazer-se coisas pouco importantes para não se ter tempo para fazer o que se deve ou para se resolver o que já deveria estar resolvido. Como alguém disse, há duas maneiras de não se ter problemas: ou se evitam ou se resolvem. Deixar para resolver um dia destes não parece ser a solução. De facto, procrastinar é apenas adiar as situações. E, na maioria das vezes, quando finalmente vamos tratar do assunto que andamos a adiar, já pagamos juros de mora. E a vida a cobrar juros costuma ser mais dura e implacável do que os bancos. Por vezes também inventamos estratégias de fuga, bem camufladas, só para não olharmos de frente para o que tem que ser feito. O curioso é que quando se adia algo, passamos a vida a pensar no assunto, com pesar, culpa e peso na consciência. Não fazemos nada, não decidimos nada, não fechamos processos mas gastamos um montão de energia a carregar o fardo. É que se o fardo existe, ele pesa-nos. E vai pesar enquanto não o descarregarmos e arrumarmos no sítio certo. Quanto mais tempo o carregarmos, mais nos vão doer as costas. Ficamos mais fracos e os fardos, tendencialmente, ficam mais pesados. Não vale a pena adiar o que tem que ser feito. Adiar só causa mais sofrimento a nós e aos outros. 

É verdade que as decisões tomadas por impulso, sob o efeito de uma grande raiva, de uma grande tristeza ou de uma exuberante alegria, também não são lá grandes decisões. Coisas importantes devem ser bem ponderadas e amadurecidas. As decisões que podem mudar o rumo da vida precisam de alguma marinada para se tomarem. Mas marinada a mais estraga o tempero. E os ingredientes. Nestas coisas deve haver sempre algum equilíbrio para que a vida possa fluir no sentido do nosso bem-estar e da nossa felicidade. A procrastinação pode ter uns pós de bruxaria que transforma coisas sem importância e simples, em questões maiores e que indispõe muito as outras pessoas. Complica aquilo que é simples e enrola aquilo que é a direito. A procrastinação faz até com que as pessoas, sem querer, percam a noção do valor da “palavra de honra”, do “prometo”, de “certeza absoluta” e do “está combinado”. Perdem credibilidade no que dizem tendo em conta o que fazem. E é uma pena porque não o fazem por mal… mas fazem francamente mal a si próprios e aos outros à sua volta. Estes são alguns dos efeitos colaterais de se tomar a tal dose de “procrastina” ao pequeno-almoço (ou a outra refeição qualquer). Um outro efeito que pode ter é o de se andar sempre a correr, a procurar cumprir o que já está fora de prazo. É que as tarefas vão-se amontoando, umas em cima das outras de forma mais ou menos caótica. Os tropeções acontecem, o planeamento deixa de fazer qualquer sentido e anda-se sempre no fio da navalha. Faz-se tudo em cima do joelho na ânsia de se tentar minorar o estrago. Isto no que diz respeito ao trabalho. Não se faz o melhor que se consegue. Faz-se o mais depressa que se consegue depois de se já ter gasto todo o tempo disponível com mil e uma outras coisas. E, lá no fundo, ficamos tristes com o nosso desempenho. Nós somos os nossos piores juízes. E culpa aproveita logo a oportunidade para nos invadir a alma. E a culpa é um sentimento horrível que não traz nenhum valor acrescentado. Só nos diminui. Mas isto é outra conversa que ficará para outra oportunidade. Agora estamos ainda a falar da sua irmã gémea, a procrastinação. (Não são gémeas verdadeiras, mas nasceram da mesma barriga e são irmãs na mesma. Normalmente passeiam juntas.)

No que diz respeito à esfera pessoal, esta menina mal comportada faz com que as pessoas passem pela vida em vez de a viverem como deve de ser. Custam a fazer opções e deixam-se estar mesmo que doa. Também nestas circunstâncias não se faz por mal. Mas faz-se muito mal. Sofre-se e, de tanto não se querer magoar os outros, acaba-se por magoá-los ainda mais. Porque os outros sabem, sentem e pensam. Porque os deixamos presos a nós mesmo quando já não há nada de bom que prenda. Porque nos deixamos estar apenas em faz de conta. Porque não vivemos nem deixamos viver. Procrastinamos ruturas porque dói romper. É verdade. Mas vale a pena pensar que mais vale doer tudo de uma vez do que doer às prestações, sangrando e rasgando a nossa carne e a carne do outro. O irrecuperável não se recupera. E é uma ferida aberta que nunca sara. A dor crónica e persistente rebenta com tudo o que de bom ainda pode fazer parte da equação. A dor e a raiva são como uma nuvem negra que apaga o que de bom existe. As ruturas no momento certo tendem a não deixar degradar as partes boas das coisas. Evitam dores maiores, efeitos colaterais de monta e preservam as partes bonitas. Adiar o que já não tem remédio só faz crescer as coisas más. E nunca se sabe o tamanho que uma coisa má pode atingir. Nunca se sabe. É imprevisível, por mais que se pense no assunto e por mais prisma que se descubra. Este é um exemplo de adiar a resolução de uma situação que causa dor. Também se pode fazer o contrário. Adiar a decisão de se puxar à nossa vida o que nos faz bem. O que nos deixa feliz. E enquanto decidimos e não decidimos, as oportunidades passam, as situações seguem com a corrente e as pessoas vão à sua vida. Também quando se adia o bom corre-se o risco de o perder. Já passou enquanto ficámos a pensar se sim ou se sopas. Ao contrário do que se pensa, é tão difícil decidir pelo bom como é difícil descartar o mau. 

Há um ditado popular que faz todo o sentido encaixar neste contexto: “prefiro o mal que conheço ao bem que não conheço”. Que tal? Profundo, hein? Pois é. Cai aqui que nem uma luva. E passo a explicar. Como tantas vezes tenho dito, tomamos ou deixamos de tomar decisões em função do medo. E às vezes preferimos ficar na nossa zona de conforto (mesmo que não nos conforte nada) do que dar um salto para algo de bom mas que é fora do nosso habitat, do nosso quadrado. O desconhecido costuma dar um medo danado. Na verdade, uma das razões pelas quais procrastinamos é porque temos medo. Medo de sofrer, medo de magoar os outros, medo da rejeição, medo de errar, medo de ser julgado, medo de ficar pequenino e indefeso. Medo de não ser capaz. Medo, medo, medo. E todos os medos são legítimos. Todas as pessoas têm medo. O medo faz parte de sermos humanos. Não podemos é deixar que o medo seja mais forte que o amor. O amor que devemos nutrir por nós próprios e pelos outros (todas as espécies de amor) deve ser mais forte do que os nossos medos. Este é um dos desafios da vida e um dos seus sentidos mais profundos. Utilizar o nosso tão sagrado livre-arbítrio em função do amor e do respeito por nós e pelos outros ao invés de o gastarmos alimentando os nossos medos.

Claro que também procrastinamos por razões mais simples e menos profundas, apenas baseadas nos princípios da chatice e do prazer. Adiamos o que nos chateia ou aborrece. E não encaixamos nas nossas cabeças duras que algures, mais tarde ou mais cedo, vamos ter que passar pelo aborrecimento que estamos a adiar. É mais fácil despachar primeiro o que nos aborrece. Fica despachado e sai-nos da ideia. E ficamos com mais tempo e mais disponibilidade para o que nos dá prazer. Se fazemos primeiro o que nos dá prazer, ficamos com o bichinho da chatice e moer-nos a alma e não conseguimos desfrutar verdadeiramente de um momento ou atividade que poderia ser tão boa. Há sempre uma nuvenzinha a tapar o sol.

Apesar de tudo, penso que cada pessoa é uma pessoa, com as suas especificidades e os seus momentos certos para ser capaz de fazer o que tem que ser feito. Eu sempre sofri do problema ao contrário. Eu tive que trabalhar o facto de ser tão resolutiva. De despachar e resolver num instante o que me cheirava que tinha que ser resolvido. A vida fez-me o favor de me ensinar a amadurecer as decisões. A ponderar as causas e os efeitos e a deixar que o tempo faça a sua magia. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Uns de nós têm que aprender umas coisas e outros o seu inverso. Mas é para isso que cá andamos, para aprender e enriquecer a alma. Para encontrar as peças do puzzle que nos faltam. Para aprender que, tal como para não procrastinar ou para não ser impulsivo é preciso trabalhar a nossa coragem. A tal força interior que nos ajuda a saltar para o desconhecido com a certeza de que não caímos. A coragem faz parte da fé. E a fé também se resume em fazermos a nossa parte, em primeiro lugar, sabendo que o Pai vai lá estar para fazer a parte Dele. A nossa parte é dar o salto sabendo que o Pai nos dará um chão fofo onde aterrar. A coragem e a fé andam sempre de mãos dadas. São a antítese da procrastinação e do medo. São forças motrizes que se manifestam em cada decisão pequenina que tomamos. Em cada “não” ou em cada “sim” que dizemos em função do bem. De qualquer espécie de bem. Ou de qualquer forma de amor.

Vale a pena pensar se o que chutamos para o ar, deixando para depois, não nos vai cair em cima mais à frente. Relembro que a força da gravidade puxa tudo para baixo, com a maior verticalidade possível. Se encontrar a nossa cabeça pelo caminho, esborracha-nos o cérebro. Não me parece que valha a pena. Quando chutamos a lata, temos o mesmo problema. Os metais pesados também tendem a ficar no nosso sistema. Ficam no nosso caminho e vão-se acumulando até serem um amontoado de sucata e ferro velho que se encontra à nossa frente e que nos impede de ver a vista do outro lado. Também não vale a pena, com tanto mundo lindo para apreciar.

Resumindo: procrastinar só faz mal. Bem me parecia que esta palavra era muito, muito feia…

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