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O vazio que rebenta umbigos


"Cuidado com o vazio de uma vida demasiado ocupada."

Li esta frase e fiquei com os pensamentos a mil. Tenho estado a refletir sobre a sabedoria que traduz. Assim em meia dúzia de palavras resume um conjunto de pensamentos que já tenho escrito ao longo deste blog. Sempre me preocuparam as correrias das pessoas. Principalmente porque me tocam cá no coração. Tenho sofrido com as correrias dos outros, daqueles que me são tão especiais e queridos. E vejo-os sofrer e fazerem sofrer os que estão à sua volta. Na verdade, também tenho tido um conjunto de conversas à volta do tema, com quem me preocupa. Mas dá igual. Quem corre precisa de parar por si próprio, porque percebe interiormente que tem que parar ou a vida encarrega-se de tratar do assunto. Tenho sempre esperança que as conversas ajudem. Mas as palavras só fazem efeito quando as pessoas estão preparadas para as receber. Nem antes nem depois. No momento certo, como tudo na vida. Nunca perco a esperança que fiquem lá a marinar um bocadinho, em conserva, até ao momento da escassez e da paragem voluntária, ou à força, para que possam emergir com todo o sentido. 

Eu tenho sempre muita esperança nos milagres do amor que dedicamos aos outros. Tanto amor há de dar em alguma coisa. O amor nunca é perdido, sempre tem um efeito positivo qualquer. E eu amo tanto quem corre, que pode ser que ajude nalguma coisa. Quando se está de fora da corrida, na bancada, é tão fácil ver as rotas, os acidentes, os problemas, as asneiras e, por vezes, toda a dimensão da pista. Até é possível que se veja como é que a correria vai acabar. O problema é que quem corre não vê nada disto. Está no centro da coisa e o objetivo é correr ainda mais depressa para chegar mais depressa a qualquer lado que não vê. E o que faz é gerir a urgência. A curva seguinte e a seguinte. E tentar manter-se na corrida sem saber exatamente porquê. Quando se corre a grande velocidade, só se vê o bocadinho de estrada que está imediatamente à frente. Não se consegue ver mais longe. Não se consegue ver o que está ao redor. Não se encontra outro caminho. Parece que só existe a pista de corrida. E teima-se em correr desalmadamente como se não houvesse amanhã. Como se o caminho se acabasse se se parasse de correr. E às vezes a vida pára-nos. E pára a valer, com um preço que pode ser muito alto. Com sequelas irreversíveis. Com muitas lágrimas de sangue. Tenho visto esta história repetir-se vezes sem conta. Tantas vezes que de vez em quando apetece-me desistir de ter esperança. A minha esperança também me faz magoar. Continuo a olhar para as pessoas como se elas fossem capazes de parar sozinhas, sempre. Mas nem sempre são capazes de o fazer apesar de fazerem o melhor de que são capazes. E toca de corações a sangrarem: o meu e o de quem corre. E de mais umas quantas pessoas envolvidas no assunto. Quem corre é como um furação que leva tudo à frente sem ter a noção do que isto quer dizer. Sem ter a noção do estrago que faz em si próprio e nos outros. Um furação é uma força da natureza muito, mas muito teimosa. Está sempre em fúria circular. Não sai do mesmo registo. Mas tal como a frase diz, apesar desta fúria circular, parece-me que o seu centro é vazio. Oco. Toda a energia do furação está na força do girar. Quando a vida está ocupada de mais, não há tempo para pensar, não há tempo para refletir. Não há tempo para usufruir de nada. Nem de si próprio, nem dos outros a quem se ama. Não há tempo para usufruir da vida, nem das suas belezas e prazeres. Quando se está demasiado ocupado não se ouvem as vozinhas interiores. Não se ouve o coração que fica afónico de tanto berrar. Não se escuta nada. Apenas se ouvem alguns sons. Aqueles que permitem sobreviver e manter a teimosia. Escutar verdadeiramente o vai por dentro e o que dizem por fora, é uma miragem, uma fantasia. Não é possível integrar tanta informação quando toda a energia está concentrada na corrida e na urgência. Toda a energia está concentrada a lutar contra o medo. Talvez um medo que não está ao nível da consciência mais direta. Talvez um medo que não deixa pensar no que tem que ser pensado. E fazer o que deve ser feito. Quando todas as forças estão concentradas em apenas sobreviver, não se vive. E perdem-se coisas que não têm preço. Perde-se tanta vida e tantos bons sentimentos e até pessoas. Quando se está demasiado ocupado, está-se ausente. E quando a ausência é muita, deixa-se de se fazer falta a quem se fazia. Porque quem fica a ver correr também tem um coração para salvar. Não pode sangrar o tempo todo. E, quem corre, um dia que tenha um bocadinho para fazer um intervalo, para revisitar o ponto de partida, já não reconhece o que deixou lá atrás. Já não está lá quem estava. E nem sabe para onde foi. Cansou-se de ver correr. Cansou-se de saltitar e de pôr o dedo no ar como quem diz, "estou aqui e quero dizer qualquer coisa". Ou "também existo", "quero fazer parte da tua vida". Ou outra coisa qualquer assim do género. Este exemplo serve para a família, principalmente para as crias. Que crescem e amadurecem sem que se acompanhe. E, de repente, aquelas criaturinhas que dormiam no nosso peito como se estivessem no céu, já são de si próprias. Sem se partilhar aqueles bocadinhos de vida em que o tempo corre devagar, lânguido, como se nunca acabasse, como se mais nada existisse a não ser o prazer da companhia uns dos outros. Quando se está demasiado ocupado, fica-se vazio de filhos.  Só se sente a sua falta. Uma falta que dói até à medula. O mesmo acontece com outros membros da família, com os amigos e com os amores. E, a concentração no estado de ocupação e na corrida é tal que, qualquer bocadinho que sobra, é para se dar conta da falta, da dor. Para sentir o vazio. Para olhar para as mãos e não ter nada. Para sentir no peito como um coração pode gelar sem se dar por isso. E o gelo provoca umas queimaduras tão fortes, tão fortes que na maior parte das vezes são irreversíveis. E neste bocadinho de lucidez, o seu umbigo dói que se farta. Quase que rebenta. Mas já não sobra energia para se pensar no umbigo dos outros que também podem rebentar. As crias rebentam todos os dias um bocadinho. E é para sempre. O rebentar de umbigo de um filho deixa marcas irreparáveis. O vazio que se sente no peito tem sempre um reflexo de vazio no peito de quem o ama. A falta que se sente tem sempre eco noutra falta que é sentida. Sempre. Há reflexo em tudo o que fazemos. Como se gasta tanta energia com o que é mau e tão pouco com o que nos faz feliz...impressionante! Como não damos verdadeiro valor ao que temos...e só acordamos quando estamos à beira de perder. Quando chegamos à solidão de olhar para o espelho e de chorarmos pelo reflexo que vemos é porque qualquer coisa tem que ser mudada e com rapidez. Quando nos confrontamos olhos nos olhos com o vazio e com a solidão, é porque andamos demasiado ocupados com o que não interessa. Com a nossa própria teimosia. Passamos a vida a apagar fogos que ficam mal apagados. E instalam-se os ciclos viciosos. Os tais que nos rebentam por dentro e por fora...

De vez em quando a vida dá-nos um  murro no estômago só para descobrirmos o vazio que lá vai dentro. Só para colocarmos as coisas numa ordem de prioridades e de valor. Para nos voltarmos a lembrar de como são boas certas coisas na vida, de como gostamos tanto de certas pessoas e como tudo isso está ao nosso alcance. Se quisermos. Se quisermos escolher o que nos faz feliz e o que também traz felicidade aos outros. Por vezes, infelizmente, é preciso descer a escada toda aos trambolhões para se aprender a subir os degraus certos, aqueles que sustentam a nossa felicidade, a nossa vida interior, os nossos sonhos e os nossos amores em todas as suas dimensões. Os murros no estômago servem para que os círculos deixem de ser círculos. Para se que mude de direção, de caminho, de escada. Para que o vicio se transforme em virtude. Para que a dor se transforme em paz e alegria. Para que se se partisse agora, neste momento, para o outro mundo, ainda se conseguisse pensar, naquela fração de segundo que separa a vida da morte, num sorridente "valeu a pena"! Mas temo que se pense qualquer coisa do género: "tanto que eu deixei de viver, tanto que eu deixei de amar, tanta solidão, tanto vazio. E já me esqueci em nome do quê...". 

Pensar nestas coisas deixa-me sempre um bocadinho triste. Principalmente porque as consigo encaixar na vida de pessoas que eu adoro. Pessoas tão virtuosas, tão talentosas, tão cheias de vida que até me dói o pouco que valorizam as coisas tão bonitas que têm. Desvalorizam a vida que são capazes de viver, tendo em conta as suas capacidades, o tamanho seu coração e a pureza da sua alma. Tanta força mal direcionada...tanta beleza mal aproveitada. Tanto talento estéril. Tão preciosos e tão sozinhos. 

Tanto umbigo rebentado, tanto ponto dado e tanta cicatriz mal fechada...
Os umbigos rebentados só cicatrizam com amor. Com muito amor, daquele rijo, perseverante e à prova de bala. Daquele que é reparador. Daquele que não recupera o tempo perdido nem apaga as memórias mas que constrói qualquer coisa de novo. E que tem a paciência de colar todos os bocadinhos partidos que saltaram dos corações. E que de tão bem colados que ficam já não parecem cacos mas sim desenhos e contornos de vida, de experiência, de aprendizagem. O amor é o maior e melhor curativo que existe. E a sua falta o maior dos males. Este amor, o tal que é em bom, é, por exemplo, o que flui entre os pais e os filhos. Onde uns nunca desistem dos outros. E este tipo de amor também existe noutras pessoas. Às vezes, basta que se queira deixar-se amar. Basta que se queira curar as maleitas e cicatrizar o umbigo que rebentou de tão cheio de vazio que estava. Tudo isto é uma questão de escolha. Sem tirar nem pôr.

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