19 de fevereiro. Hoje é um dia que marca a minha vida. Dois dias depois do meu aniversário, no dia 19 de todos os meses de fevereiro, fico nostálgica. No dia 19 de fevereiro do ano em que fiz 17 anos de idade, amadureci tanto que quase caía de madura. Independentemente de ter sido há muitas luas atrás, todos os dias 19 de fevereiro guardo um bocadinho só para mim e para o meu avô materno. Foi o dia em que ele partiu para o Céu e eu ainda não tinha perdido ninguém. Foi a primeira vez que alguém muito querido faleceu. E desde essa data que recordo o meu avô quase todos os dias. Os anos vão passando mas o amor não passa. As saudades não passam. O que acontece é que as saudades se transformam. Deixam de doer para serem recordações e vivências muito, muito queridas. Já por aqui falei neste meu avô. Que me ensinou tanto! Que me amou tão bem! Na verdade não era meu avô de sangue. Era padrasto da minha mãe desde os seus 3 anos de idade. Ensinou-me que a família é feita pela força do amor e não pela força do sangue. Ensinou-me que com poucas palavras se pode dizer quase tudo (o que para mim é quase contraproducente, gostando eu tanto do palavreado). Ensinou-me que não há quase nada no mundo mais reconfortante que os abraços de quem nos quer bem. Lembro-me de ficar horas a fio na sua companhia, só ali, junto a ele. A observar, a falar de tudo e de nada. Pedia-lhe para me contar histórias antigas. E ele contava. Ainda hoje sou completamente vidrada nas histórias dos velhinhos. E lembro-me da sua serenidade, da sua calma, do seu amor discreto e silencioso. Lembro-me da doçura dos seus olhos. E lembro-me de pensar que eu tinha o melhor avô do mundo. O tal que me fazia todas as vontades, que tinha toda a paciência, que falava baixinho, que me levava com ele para todo o lado. Que rebentava de orgulho quando diziam que eu, sua neta, era fisicamente muito parecida com ele. Diziam que tínhamos muitas parecenças. Nós não nos desmanchávamos mas depois fartávamo-nos de rir: é que não tínhamos qualquer laço de sangue, como poderíamos ser parecidos? Mas era uma alegria. O meu avô era um homem de paz, conciliador, discreto e muito, mas muito astuto. Quando não gostava de alguém, não havia nada a fazer. A verdade é que era um excelente avaliador do carácter das pessoas. E raramente se deixava enganar. Com ele aprendi o significado de honra. De andar de cabeça erguida. Da importância de sermos de "boas contas" e de a nossa palavra valer um mundo inteiro.
No dia em que o avô faleceu, não consegui verter uma lágrima. Apesar de ter apenas 17 anos, fiz questão de ser eu a tratar de todas as questões relacionadas com a preparação do corpo para o funeral. É verdade. Não queria que ninguém de fora viesse mexer numa pessoa que me era tão querida. A mulheres da minha família lá andavam ocupadas a cair para o lado e a ser um bocadinho baratas-tontas. Sem ser de propósito, claro está. Fizeram o que foram capazes na altura. Lembro-me do meu pai ficar de boca aberta a ver como eu estava a tratar de tudo. Não sei o que me deu. Mas tenho esta característica desde sempre: quando acontece uma desgraça, uma emergência ou uma situação de extrema tristeza, baixa-me um sangue frio que eu não sei de onde vem. E é impossível verter uma lágrima. Tranco o coração nessas alturas. Mas tranco-o automaticamente. O que não sei fazer em situações quotidianas. Aliás, o meu problema no dia a dia é ter o coração sempre ao pé da boca e a sentir desalmadamente. Em situações extremas, resolvo tudo o que há para resolver. E assim aconteceu no dia em que o meu avô foi para o Céu. Passei a noite em branco. Não consegui dormir. E só no dia seguinte, no funeral, é que desatei a torneira até não ter mais nada para chorar. Esgotei o stock todo. Lá consegui dar vazão ao que sentia. Claro que aos 17 anos não se reflete sobre estas coisas. Hoje percebo que aquele momento foi altamente marcante. Tive a noção de perda definitiva, de dor irreparável e de mais uma quantidade de emoções desconcertantes. Mas também fiquei a saber bastante sobre mim própria. Fiquei a pensar na importância que as pessoas têm na nossa vida. Como estão ali sempre à mão, não lhes damos o devido valor. Eu sempre vivi com os meus avós maternos. Éramos uma família de 3 gerações, com tudo o que isso implica. Faziam parte. E como fazem parte, não perdemos tempo a dizer como é bom que façam parte de nós. Essa lição eu também aprendi nesse momento de perda. Lembrei-me de uma data de coisas que gostaria de ter dito ao meu avô e que não disse. Mas ainda hoje seria capaz de reconhecer o seu cheiro, a forma do seu abraço e a sua voz. Tratava-me por "miga". Um diminutivo de amiga. Pairava sobre a minha vida. Acompanhava todo o meu crescimento. E chorava sempre que a escola acabava e que nós íamos de malas e bagagens para a praia. Eles ficavam. Antigamente os avós não gostavam de praia, parece-me. Vertia sempre umas lágrimas, discretamente, porque um homem não chora. Sentia-se sozinho sem a bagunça toda à volta. Embora fosse um pouco solitário e bichinho do mato, o meu avô amava profundamente quem amava. De forma serena, presente mas guardando alguma distância. O meu avô foi uma figura masculina muito importante na formação do meu carácter. Estava sempre lá, à minha espera. Disponível para mim. E entendiamo-nos muito bem no silêncio. A relativa ausência do meu pai foi muito compensada pela presença deste meu avô. Guardo-o no meu coração como uma das maiores relíquias que a vida me deu. Tenho a certeza que um dia nos vamos reencontrar, se eu lhe conseguir chegar aos calcanhares...
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