Avançar para o conteúdo principal

Verão de S.Martinho e compaixão

O verão de S. Martinho é a ultima réstia de alegria climatérica até à primavera. Eu entendo que tudo faz falta, a chuva, o frio, o tempo pingão. Tudo faz parte da natureza e do seu equilíbrio. Eu entendo. Mas não gosto. Nem sequer sou uma pessoa friorenta. Mas a chuva, que é preciosa e faz muita falta, retira-me a liberdade. Retira-me a espaço de manobra. O mau tempo não me deixa fazer aquilo de que tanto gosto: andar livremente por aí sem preocupações a apreciar a natureza, a verdadeira e a urbana. Pois claro que também existe uma natureza urbana que me encanta. Observar o mundo é um dos meus passatempos preferidos. Entender cenários e histórias é uma delícia. Eu poderia viver num sítio onde fosse sempre verão. Perto do mar e com muito verde. Não me farto do bom tempo. Não me farto das roupas leves. Detesto muita roupa, muitas camadas, casacos, luvas, gabardinas e guarda-chuvas. Este tipo de acessório incomoda-me. É mais uma tralha que só carrega o espírito. Gosto de leveza também no vestir. Tem mais a ver comigo. Tudo é uno na nossa maneira de ser, não é?

Eu que sou apaixonada por ditados populares, pensamentos, reflexões e frases daquelas que “matam” logo o assunto, lembro-me daquela que diz o seguinte: “o verão é capa de órfãos”. Até vem a calhar no enquadramento da história de S. Martinho. Na verdade, nas minhas caminhadas, para além de todas as lindezas que vejo no percurso, também existe um outro lado, como em tudo na vida. Entretenho-me muito a observar as pessoas de uma maneira geral. Os turistas de vários países, as pessoas mais exóticas, as engraçadas, as que parecem felizes e as tristes. Muita coisa se pode inferir pelo caminhar, pela postura do corpo, pelo semblante do rosto. Para além desta amálgama de pessoas existem aquelas que me põem imediatamente no meu lugar. Aquelas que observo com muito respeito e compaixão. Todos aqueles a quem a vida deu um trambolhão, e que se encontram no chão. Existem muitos anjos caídos nesta maravilhosa cidade. A luz que ela emana é talvez a única coisa que os conforta. Assim como a capa protetora do verão. Vejo muitas pessoas que vivem no vão de arcadas e que todos os seus bens se resumem a umas caixas de papelão com uns cobertores velhos e imundos. Tudo o que damos por garantido na vida, de repente, fica reduzido a 3 tarecos indefiníveis. 

Penso muitas vezes no mau tempo, frio e chuva e nestas pessoas sem casa, nem lareira, nem aquecimento central. Nem abraços apertados daqueles que matam qualquer frio. Em profundo isolamento e alienação. Já tenho alguns que vou conhecendo e observando melhor. E tento pensar nas suas histórias de vida…são filhos de alguém tal como nós e, se calhar, até são pais, tal como nós. Se calhar já tiveram muitas coisas, tal como nós. E, tal como nós, têm um coração. Talvez adormecido ou até enregelado. Mas bate, tal como o nosso. 

Muitas vezes me dizem que estas pessoas têm muitos apoios em termos institucionais, que algumas estão na rua por opção, que são alcoólicos, toxicodependentes, doentes mentais, que não tiveram juízo, que fizerem más opções e outras coisas do género. Não digo que não. E nem são as causas que me interessam. Não deixam de ser pessoas e não deixam de estar na rua, em plena miséria, física, psicológica e material. Pois talvez não tenham sido capazes de fazer melhor com as opções que tiveram. Talvez tenham feito tudo errado. Talvez assim tenha sido com alguns. Mas não deixam de estar no estado em que estão. No verão a coisa ainda escapa. No inverno, tudo se agudiza. E nas minhas caminhadas posso aprender muito com estas pessoas. Em primeiro lugar aprendo a valorizar profundamente tudo o tenho. As minhas capacidades, a minha saúde, os meus confortos e as minhas coisas. Aprendo a apreciar cada palavra bonita que me dedicam, cada abraço, cada mimo, cada gotinha de amor que me oferecem. Valorizo todos os olhares de frente e todos os sorrisos. (Não vejo ninguém na rua a olhar de frente para estas pessoas. De preferência, tratamo-las como invisíveis, para que não nos aviltem o peito). E estes anjos caídos, na sua tão grande miséria, ajudam-me a ser melhor pessoa. Muito melhor pessoa. Ajudam-me a dominar a minha ira. Muitas vezes, quando estou prestes a explodir ou a perder a cabeça com qualquer porcaria, penso que não vale a pena. E não vale mesmo. Não vale a pena gastar energia com coisas que nos fazem mal e que podem magoar os outros. Nem sempre consigo. Mas tento muitas vezes. Penso em quem nada tem e passa-me a fúria. Penso na senhora que vejo vestida dos pés à cabeça de sacos de plástico do lixo daqueles cinzentos-escuros. Com um olhar tão vazio e com um rosto tão inexpressivo que lembra uma marioneta. Daquelas marionetas que estão atiradas para um canto qualquer e que já não contam histórias nem animam teatros. Já nem fiozinhos têm. Parece que só existem, já nem são coisa nenhuma. E “ser” é o busílis da questão. Penso no que esta senhora pensará, no que sentirá, como se poderá definir o “ser” daquela senhora? Não faço a mais pálida ideia. Mas guardo-a na minha memória para que me ajude a caminhar na vida com toda a humildade.

Existe um outro amiguinho que costumo ver com regularidade. Novo, sem eira nem beira, como todos os outros e com o rosto profundamente marcado por todos os invernos que já o assolaram. Num destes dias, vi-o, com um bocadinho de espelho partido na mão e com um pente quase sem dentes a pentear o seu indescritível cabelo. Um cabelo indomável pela falta de higiene e de corte. Mas naquele momento aprendi uma lição: o valor da dignidade. E pensei que apesar de todos os pesares, de todo o despojamento, de todos os invernos e tempestades, a dignidade, tal como a esperança, deverão ser valores invioláveis e que só poderão acabar quando partirmos deste mundo para o outro. São valores que deveremos guardar no nosso coração e defender com todas as nossas forças e, em simultâneo, fazer respeitar e fomentar na nossa relação com os outros. Esta imagem do pentear de um cabelo indomável com um pente que já não penteia também a guardo na minha memória. Vai fazer parte do meu portefólio de lições de vida. Quando tudo parece perdido, a nossa dignidade pode ser a última coisa que nos resta. Estimo-a muito melhor hoje em dia. Valorizo-a muito mais. Estas pessoas que são tão transparentes aos olhos de quem passa são enciclopédias no que diz respeito ao formar do nosso carácter. 

Convido-vos a olhar com olhos de ver para um destes queridos que vivem na rua. Com olhos de quem quer aprender qualquer coisa. Também com os olhos do coração. O nosso coração vai agradecer. Vai bater mais forte e com mais compaixão.

Comentários

As mais lidas...

Os olhos da alma

Existem olhares que matam. Não matam a vida mas matam o coração e a alma. Hoje estou neste comprimento de onda. A pensar na importância que os olhares têm. Eu, que sou uma pessoa cheia de palavras e que adoro este tipo de expressão, sou uma franca apreciadora de olhares. Não só de olhares como também de todo o conjunto de formas não verbais de comunicarmos uns com os outros. Da mesma forma que o nosso subconsciente e o nosso coração são muito mais inteligentes que o nosso cérebro e que a nossa racionalidade, o não verbal expressa muito mais sinceramente o que o outro está a pensar ou a sentir. E o olhar é majestoso nesta forma de comunicar. Penso que existem olhares que salvam e olhares que condenam. E não são necessárias quaisquer palavras a acompanhar o que se diz com os olhos.  Neste momento tenho os pensamentos a mil à hora (o que não é difícil, tratando-se de mim). E penso nestas coisas dos olhares. Da importância que tem olharmos os outros, olhos nos olhos, de igual para igu

Corações à janela

De vez em quando o meu coração sai fora do peito. Deixa um lugar vazio. Cheio de nada. Vai espreitar à janela. Vai ver se existem outros corações como ele, a espreitarem, a ver se encontram o que lhes falta. Quando se espreita à janela de uma casa vazia, vê-se fora uma multidão que ainda torna mais vazia a casa da janela onde se espreita. A janela de onde o meu coração espreita tem uma vista colossal sobre a rua da amargura. Da janela vêem-se outros corações a espreitar. Uns despedaçados, outros partidos. Todos os corações inteiros e de saúde encontram-se dentro do peito onde pertencem. Quanto muito, passeiam de um peito ao outro quando se trocam palavras de amor. Não espreitam à janela de casas vazias. Mas uma casa vazia torna-se muito grande, muito solitária e muito fria para que um coração rasgado possa estar sozinho em paz a sangrar. Tem que se entreter e vai espreitar à janela. Tem que ver se encontra um outro coração com quem possa partilhar as mágoas. E faz adeus aos outros

A parvoíce de verão

Resolvi renovar a imagem deste blog. Os meus mundos necessitam de ser dinâmicos. Diz-se que as aquarianas são assim. Detestam rotinas e mais do mesmo. Assim, vou alterando o que posso alterar. Com tantas cores que a vida tem, não é necessário andar-se  sempre com os mesmos tons. Por outro lado, quando não se consegue mudar questões estruturais da nossa vida (embora nos apeteça) vamos mudando o que podemos mudar, o que está ao nosso alcance.  Resolvi então arejar um dos meus mundos mais queridos, o da escrita. Como sou eu própria, mantenho uma certa constância em termos cromáticos e de forma. Há coisas que aqui, tal como na vida, não abdico. São muito próprias, muito minhas. De resto, adoro experimentar tudo o que é diferente de mim. O que é meu eu já conheço. Interessa-me experimentar tudo o que é novo. Deve ser mesmo por ser aquariana de signo com ascendente em aquário. Muito aquário por metro quadrado! Não me safo do exotismo deste arquétipo. Falo disto como se percebesse alguma