O coração é o nosso órgão mais resistente. Bate noite e dia, anos a fio sem reclamar nem pensar em tirar férias. Só pede que o tratemos com o mínimo de dignidade. Que o cuidemos tal como ele cuida de nós. Na verdade ele cuida muito melhor de nós do que nós cuidamos dele. Por vezes até o cuidamos bem mal. Fazemos com que bata acelerado, descompassado, colocamo-lo na boca, nos pés e em qualquer outro lado desde que a ansiedade assim o deseje. Às vezes apertamo-lo tanto no peito que parece que o vamos rebentar. Damos-lhe arritmias, taquicardias, ralações, nervoso miudinho, angústia e mais um conjunto de presentes envenenados que o deixam tão intoxicado e frágil.
Mesmo assim, o nosso coração teimosamente resiste e continua a bater, velando pela nossa sobrevivência. Apesar de todas as maldades que lhe fazemos, parece-me que aquilo que o magoa mais (ao coração) é o facto de não o ouvirmos. Passa a vida a berrar para ser ouvido. Já se sabe que berrar também não dá muita saúde a ninguém. Desgasta, irrita, enraivece. Mas na verdade, o coração também é o nosso órgão mais perseverante e resiliente. Gasta-se até à última batidela para cuidar de nós como um todo, procurando indicar-nos o caminho para sermos felizes. É que ao contrário daquilo que se pensa, quando nós vimos a este mundo, já trazemos um GPS incorporado. Não está onde se pensa que está – na cabeça. Está no nosso coração. O coração é que deve estabelecer as rotas e as escolhas. E sempre que escolhemos ao lado ou invertemos o caminho original, o nosso coração sofre. E muito…
Neste momento preocupo-me particularmente com quem tem o seu coração partido. Na verdade, uma das outras (grandes) maldades que fazemos ao nosso coração é parti-lo. Em mil bocadinhos, por rachadela profunda ou simplesmente ao meio, qualquer quebra é uma dor muito acentuada e profunda. Não se parte o coração apenas por amores que resultam mal ou que não são correspondidos. Há sempre uma maneira nova (ou antiga) de se partir o coração. Por vezes bastará fazer-se uma reflexão bem feita sobre a nossa vida até ao momento. Sobre as nossas escolhas, as nossas decisões. Sobre o ponto onde nos encontramos. E cada reflexão profunda e honesta pode partir um bocadinho do coração. Ou fazer-lhe uma rachadela daquelas que até sangram. O coração também sangra que se farta. Se os olhos choram lágrimas salgadas, o coração chora lágrimas de sangue. Vermelho-vivo. Daquele que também é da cor do amor. E, como tudo na vida tem remédio e reparação de uma forma ou de outra, só o coração é que poderia chorar lágrimas de sangue. É que só um coração é capaz de curar outro coração. O amor é a principal cura para todos os males, rachadelas e buraquinhos. O amor é a massinha, o cimento que volta a colar os bocadinhos de coração partidos. Às vezes, um coração partido consegue ir-se curando a si próprio. Com dificuldade, com muita dor e com muito sofrimento. Mas lá se consegue ir remendando. Até existem partidelas que têm que se curar sozinhas, têm que regenerar e deixar-se imbuir do espírito da fénix renascida. Por muito que custe, há descobertas, reflexões e sarar de feridas que se fazem a sós. A conversar de si para si, de si para o seu próprio coração. Ouvindo o que ele tem para nos dizer, com toda a humildade e com todo o amor-próprio. Para sararmos temos que saber que não somos perfeitos e que errar faz parte do processo de estar vivo. Sem culpas. Destilando o desespero. Deitando fora tudo o que está destroçado e remendando o que há para remendar. E começando de novo ou de outra forma para o que não tem remédio. O que não tem remédio, remediado está.
Apesar desta cura a sós, que muitas vezes é desejável e indispensável, existem outras formas de cura. A cura solitária tem que ser aplicada na dose certa, na justa medida. Só enquanto faz falta. Não mais do que isso senão pode morrer-se da cura se não se morrer da doença. Uma outra forma de cura, talvez complementar, digo eu, será a de buscar um outro coração. Um coração que saiba exatamente qual é doença e que tenha a disponibilidade para o fazer. Não será preciso ter-se uma poção mágica para curar corações partidos. Basta ter-se amor. Muito amor e de boa qualidade. A mestria está no saber-se oferecer o amor que cura e no coração doentinho saber receber. Saber dar na justa medida que o outro precisa. Pode ser só e apenas dar colo e amparar as lágrimas. Depende das necessidades. Quem recebe tem que não ter medo nem vergonha de se deixar amparar. Não é fácil olhar de frente para as suas fragilidades, medos e asneiras. É preciso ter-se muita coragem para isso. Também é preciso ter-se muita coragem para se receber amor de um outro coração que apenas deseja o nosso melhor. Sem questões, sem julgamentos, sem cartadas na manga. Só dádiva. Custa, a quem está magoado com a vida ou consigo próprio, acreditar que existem corações prontos a curar só por amor. Mas lá que eles existem, existem…
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