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Memórias, arpões e garras

Hoje apetece-me escrever sobre aquelas pessoas que passam na nossa vida e que nos marcam a alma. Há pessoas de quem nós nem nos lembramos de alguma vez ter conhecido. Não deixaram impressão quanto mais carimbo! No meu caso, que tenho uma memória essencialmente emocional, as pessoas desempenham um papel muito estrutural na minha árvore da memória. Vão desde as raízes mais profundas até aos meus ramos mais altos. É verdade. Acho que posso comparar o meu mundo de memórias a uma grande árvore. Onde lá cabe tudo. Nesta minha árvore de memórias passadas e de memórias recentes - de ontem- por exemplo, há lugar para todos os que deixam marca. E para todas as marcas que alguns deixam. E esta minha árvore é grande que se farta. Luminosa e vivaça. Apesar de as minhas memórias serem essencialmente emocionais, com tudo o que isso tem de bom e com tudo o que isso tem de mau, não gasto muita energia com memórias cinzentas. Cinzentas e negras são aquelas memórias que encerram mágoas, dores e desgostos. Não me prendo a estas emoções. São as folhas caducas da minha árvore. Quando passa o tempo certo para terem tido a sua utilidade, arranjo maneira de me colocar a jeito do vento para que essas folhas negras voem. E voam de ali para fora. Vão-se embora. Eu não me esqueço que existiram e nem me esqueço do que aprendi com elas. Mas não as guardo na minha árvore. Coloco essas experiências e aprendizagens menos boas num outro lugar.

Na minha árvore das memórias, procuro guardar as melhores emoções. Que são de todas as cores. As cores da vida são maravilhosas e tornam a minha árvore numa árvore arco-íris. E, tal como o arco-íris, não sei onde a árvore começa nem onde acaba. Existe desde que me lembro de mim e vai crescendo de dia para dia. E quando uma pessoa muito importante faz uma das minhas cores mais brilhante, a minha árvore agradece. Em vez de frutos, esta árvore permite-me guardar emoções, sentimentos e imagens fantásticas. Por exemplo, quando as saudades de alguém apertam muito, lá vou eu colher uma boa emoção ou uma boa imagem da pessoa em questão. E ajuda. As saudades não vão embora mas amenizam. Ficam menos violentas. E a emoção de dor por ausência torna-se em boa emoção por recordação. É uma estratégia. Uma das que uso para me manter à tona da água quando me faltam as pessoas que me fazem falta. E eu que sou muito intensa nas minhas emoções, quando gosto, gosto a valer. Assim, quando as pessoas me fazem falta, fazem-me falta a valer. Quando as pessoas passam por mim a rasgar, rasgam a sério. Por vezes, e por minha própria defesa, gostava de ser um bocadinho mais comedida e equilibrada no que sinto pelas pessoas. Mas contenção, temperança e mornices emocionais são coisas que não me assistem. Nada a fazer. No meu caso, o amor não é uma flechazinha do Cupido. É o arpão do Nepturno. Onde espeta, está tudo estragado. É à grande, movendo mares e oceanos. Claro que isto é uma chatice. Apesar de assim ser, tenho que conter o seu aspeto exterior. A minha sorte é que no meu universo interior cabe lá tudo. E dá para tsunamis, terramotos e vulcões. Cá nos meus mundos, as forças da natureza aprenderam a viver umas com as outras. Que remédio! Fazem a sua bagunça toda por dentro e, por fora, a calma impera e pouca gente dá por alguma coisa. Até parece que que não se passa quase nada. A idade vai dando estas capacidades de disfarce. Não gosto mas tem que ser por variadíssimas razões que não são para aqui chamadas agora.

Se o amor é um arpão, as saudades são garras daquelas que cravam as unhas e é um Deus me livre. Também muito à grande. Escrevo muito sobre saudades. Escrevo muito porque sinto muitas. É um sentimento que me acompanha desde sempre, por variadíssimas razões na minha vida. Penso que quando se ama muito, também se sofre muito de saudadite aguda. Tenho muitas saudades de pessoas que amei muito ou que me souberam amar. Poucas mas boas. Umas já partiram para o céu e outras ainda por cá andam. O problema das garras de saudade é que não dá para tentar conversar ou negociar com elas. São só garras, não têm cabeça. Não pensam, só sabem cravar, fundo, fundo, doa a quem doer. E se as tentamos arrancar, elas, como boas garras que são, rasgam a carne e fazem sangrar. É pior a emenda do que o soneto. Mais vale deixá-las estar até que se cansem. 

Na verdade, na minha árvore das memórias, a tal que é de muitas cores e de muitos amores, também lá existem os arpões que não saem e as garras que nunca descravam. Quando uma cria nos nasce, há um arpão que se prende que nunca mais se desprenderá. E tantos serão os arpões quantas as crias. E quando as crias começam a ganhar asas e a voar, esquecessem-se de levar as patitas e lá ficam as garras cravadas na nossa vida. Mas é assim mesmo. A vida é assim mesmo. E toca de tratar de trabalhar o desapego. O desprendimento. O amor é igual, a saudade é igual mas sem dependência. E assim a árvore das memórias continua colorida com coisas boas e não se torna cinzenta. Também é uma escolha que se tenta fazer. Guardar o lado bom do amor e das saudades. Guardar a importância e o valor que cada sentimento tem. Tento escolher separar o bom sentimento da dor da sua ausência. Procuro, com todas as minhas forças, dedicar-me ao lado bom das coisas. Deus deu-me a graça do optimismo, da alegria e da esperança. Valorizo muito estas graças. Já aprendi o que a sua ausência pode fazer no coração e na alma de uma pessoa. O pessimismo, a tristeza e o desalento são um buraco negro que suga toda a essência divina. Quando temos um vazio, este pode ser preenchido com qualquer coisa. Um buraco negro suga até o vazio. É destrutivo. Esta é uma das aprendizagens que já fiz. O medo é antítese do amor (como passo a vida a repetir) mas os buracos negros emocionais são outras faces do medo e, como tal, antítese do amor. E este é o sentimento mais forte e precioso que devemos guardar no nosso coração. Aquele sentimento ardente que podemos dedicar a Deus, a nós próprios, aos outros, à natureza, a toda a criação e a tudo o que nos apetecer amar. E, cumprindo-se uma das leis divinas e universais, quanto mais amor damos mais amor nos cresce e mais amor recebemos. Isto é invariavelmente assim. Pode não ser de forma direta, da forma que estamos à espera ou até da forma que somos capazes de reconhecer mas é da forma que for melhor para nós e para a nossa alma. E quando a nossa alma está iluminada com a luz do amor, os buracos negros fogem a sete pés. Não se dão bem com tanta luz, diz que ficam encandeados. O amor é maravilhosamente invasivo e dá conta não só da nossa alma como também do nosso coração, do nosso pensamento e do nosso corpo. Então não é o melhor do mundo? 

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