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A tristeza e o Natal

Hoje, recorrentemente, tenho-me lembrado de um pequeno mas maravilhoso poema de Natal de Ary dos Santos, que diz assim:

"Quem faz das tristezas forças
e das forças alegrias, 
constrói à força de amor, 
um Natal todos os dias".

Lembro-me muitas vezes deste poema. Em primeiro lugar porque tudo o que é bom deveria ser repetido todos os dias. Ou pelos menos, tantas as vezes quantas as possíveis. E, sendo um lugar-comum, o Natal deveria de facto acontecer todos os dias. Seriamos muito mais felizes e faríamos os outros mais felizes.

Mas esta não é a razão emocional que me leva a recordar, hoje, de forma quase obsessiva este poema. Invade-me e martela-me o pensamento assim como um carrilhão de sinos. Um sino para cada frase. O mais agudo será talvez o de fazer das tristezas forças. Há dias, momentos, fases, épocas na nossa vida em que, no que diz respeito à tristeza, não há nada a fazer senão senti-la. Aceitar que entrou no nosso coração e que vai permanecer até a conseguirmos espantar. Não podemos fazer nada para anular a sua causa. A sua origem. Não depende de nós. Está em mãos alheias, em decisões de outros. Assim, não depende de uma escolha nossa. Não é consequência do nosso livre arbítrio. Estas são as tristezas mais difíceis de mastigar. São as mais amargas e as que demoram mais tempo até se dignarem a sair. Mas a verdade é que também não podem permanecer assim tanto tempo connosco. Não se podem tornar residentes. Habituarem-se a viver connosco e nós com elas. 

A tristeza tem também um lado aditivo como tudo o que é intenso na nossa vida. Por vezes, a tristeza preenche o vazio, o nada. O buraco negro. É capaz de doer mais o nada do que a tristeza em si. A ela sempre nos vamos habituando. O nada, o buraco negro, suga-nos, não nos alimenta. A tristeza sempre nos vai alimentando. Mal, mas vai. Esta é a tentação a que temos que escapar. É como aquele ditado popular "mais vale só do que mal acompanhado". Todos concordamos. Mas quantas pessoas conhecemos que preferem estar mal acompanhadas a estarem sozinhas? A solidão também é um buraco negro. O sofrimento de uma má companhia também nos causa alguma habituação - pelo menos não se está sozinho. Pelo menos. Duas palavras que usamos tanto. Vezes de mais para podermos ser felizes. Temos que inverter o pensamento, os caminhos mentais e usar "pelo mais". Pedir o melhor para nós. Desejar o nível acima em vez de se ficar feliz por não estarmos ainda num nível mais abaixo. 

A tristeza trata-se faseadamente. Em primeiro lugar, é deixar doer. É deixar sair essa energia que nos rasga o peito e esmaga o coração. Que nos inunda os olhos até a vida ficar turva. É deixar doer até que ela perca o poder que tem sobre nós. Quando perde esse poder, já só está e pronto. Já não nos comanda embora nos incomode, nos mace, nos inquiete. Este é o momento em que vale a pena tentar transformar essa tristeza em força. É o momento de virar o jogo. É o momento de passarmos a ter poder sobre ela. É o momento certo para que deixe de ser aditiva e passar a ser apenas mais uma componente da vida. Esta transformação em força acontece quando olhamos a nossa tristeza nos olhos e a desafiamos mostrar-se inteira. É preciso conhecê-la muito bem para a podermos transformar. Não resulta nada bem fazer de conta que não existe. Ou não querer saber. Ou escondê-la de nós próprios. Ou ignorar a sua causa, a sua origem. Ou fugir dela. Quando a ignoramos ou escondemos, estamos a dar-lhe poder, a deixar fermentar. E ela cresce, cresce, até rebentar. Normalmente, nós sofremos os efeitos colaterais desse rebentamento. A tristeza rebenta com ela própria, connosco à mistura. A tristeza também é muito veloz e perspicaz. Quando fugimos dela, ela apanha-nos sempre e, de preferência, desprevenidos. Mais vale encará-la de frente. 

Somos capazes de a transformar em força quando lhe mostramos malcriadamente a língua, e, olhando-a nos olhos, dizemos:
- "Conheço-te melhor do que tu a ti própria. Não me metes medo. Sei de onde vens e do que és capaz. E a minha alma é maior do tudo o que me entristece. E a minha alma alimenta-se de alegria, de luz, de amor, de fé. Às vezes de saudade. Mas nunca de tristeza nem de medo."

A partir deste momento, a tristeza começa a enfraquecer, a minguar, a desapoderar-se do nosso coração. Está aberto o caminho para que amor ocupe o lugar que a tristeza deixou vazio. Qualquer tipo de amor é bom. Principalmente aquele que temos por nós próprios. Aquele que advém das forças, das alegrias, das lutas que fomos capazes de vencer. E tudo isto se torna num ciclo virtuoso de alegria, força e amor. Afinal, o Natal pode mesmo acontecer todos o dias. Construído no nosso coração. Com a força do amor que fomos capazes de sentir. Com a força com que lutamos contra a tristeza. Com a alegria que resulta do facto de não nos termos deixado invadir por ela, de não a termos deixado tornar-se viciante, de acordar e de se deitar connosco. 

Nos últimos tempos, este tem sido e continuará a ser o meu desafio - a batalha contra a tristeza. Durante quanto tempo, não sei. A única certeza que tenho é que gosto do Natal. E ainda que o amor é a força mais poderosa do universo. Quando tudo parece negro, como o tal buraco, o amor acende-nos uma luz poderosíssima e dá-nos a mão. Ou as duas, conforme o tamanho do buraco e a negritude que lá paira. E, com a sua força, devolve-nos o que a tristeza nos tinha levado. E acontece o Natal exactamente onde deve, no coração.

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